Crises entretecidas por colapso de barragens: da
reconexão de espaços às narrativas hesitantes
Revista
Estudios Avanzados 31, julio
2019: 42-65. DOI 10.35588/idea.v0i31.4274 ISSN
0718-5014
Crises entretecidas por colapso de barragens:
da reconexão
de espaços às narrativas hesitantes*
Crisis Intertwined by Collapse of Dams:
from
Reconnecting Spaces to Hesitating Narratives
Norma Lopes da Silva Valencio**
Resumo
No Brasil,
barragens de diferentes portes e finalidades têm rompido com relativa
frequência nas últimas décadas. Tais ocorrências deflagram desastres, o que se
torna uma razão adicional para problematizar a implantação desses
empreendimentos. Tanto as narrativas dos gestores públicos quanto as narrativas
midiáticas podem agir como filtros que contribuem para ocultar certos aspectos
da crise enquanto há visibilidade de outros. Essa reflexão sociológica aponta
aspectos socioespaciais e discursivos sobre esse jogo de mostrar e ocultar a
magnitude da crise socioambiental. Ilustrativamente, são abordados três casos
de rompimento de barragem ocorridos em regiões distintas do referido país, a
saber: o da barragem de Algodões 1, localizada no estado do Piauí, região nordeste,
ocorrido no ano de 2009; o da barragem do Fundão, localizada em Minas Gerais,
região sudeste, em 2015 e o do conjunto das represas de Paragominas, no estado
do Pará, região norte, ocorrido em 2018. Conclui-se que o rompimento de
barragens não é apenas uma crise pontual, mas o ápice de uma lógica
tecnocrática de subestimação dos riscos na qual a cobertura midiática predispõe-se
a replicar a narrativa oficial, resultando em perda de subsídios para uma
consciência pública mais crítica sobre o assunto.
Palavras-chave:
colapso
de barragem, crises, emergências, defesa civil, mídia, desastres.
Abstract
In Brazil, dams of
different sizes and purposes have broken down relatively frequently in recent
decades. Such occurrences trigger disasters, which becomes an additional reason
to problematize the implementation of these enterprises. Both crisis management
and media narratives can act as filters that contribute to hide socially
relevant dimensions of the problem by making others visible. This sociological
reflection points out some socio-spatial and discursive aspects about this game
of showing and hiding the magnitude of the socioenvironmental crisis. Three
cases are focused on, respectively, those related to the rupture of the dam of
Algodões 1, in the state of Piauí, ortheast region, occurred in 2009; Fundão, in the state of Minas
Gerais, Southeast region, in 2015, and Paragominas dams, in Pará, North region,
occurred in 2018. We conclude that the disaster is not a one-off crisis, but
the apex of a technocratic logic of risk underestimation in which media
coverage predisposes to replicate the official narrative, resulting in a loss
of subsidies to a more critical social public consciousness.
Keywords: dam collapse, crises, emergencies, civil
defense, mass media, disasters.
Introdução
Revelar
ou ocultar algo de alguém são, a rigor, práticas opostas. Enquanto a primeira
se refere à predisposição para expor os elementos constituintes de uma dada
situação e ensejar a sua elucidação, a ocultação diz respeito à intenção de
obstruir o entendimento pleno de aspectos fundamentais para se chegar à
compreensão adequada da situação focalizada. Quando se trata de uma crise
deflagrada pelo colapso de barragem, um jogo de revelação versus ocultação é acionado pelos atores envolvidos, produzindo
muitas nuances interpretativas que ora pendem para um lado, ora pendem para o
outro. Uma dessas nuances é a que produz sombreamentos que contribuem para
atenuar responsabilidades públicas e privadas sobre o episódio trágico havido.
Colapso de
barragem é um evento sociotécnico (Zhouri et
al, 2016) que desencadeia desastres, isto é, produz perturbações
multifacetadas nas dinâmicas sociais e ambientais dos lugares afetados. No
processo de implantação de barragens e dos negócios associados (usina
hidrelétrica, extração minerária, projeto de irrigação), os empreendedores e as
autoridades locais se aliam para conquistar visibilidade midiática e regional à
iniciativa, fornecendo informações detalhadas sobre o vulto dos recursos investidos
e os benefícios esperados, no intento de obterem a legitimação da aliança que
viabilizou a reconfiguração territorial (Locatelli, 2014) enquanto minimizam os
conflitos territoriais decorrentes. Eclodem conflitos sociais no anúncio das
obras civis e esses recrudescem no desmantelamento dos lugares, cujas
comunidades são compulsoriamente deslocadas e mal indenizadas. Além disso,
barragens suscitam relações de vizinhança incômodas porque não é dado às
comunidades saber exatamente o modo como são gerenciadas.
Ao colapsarem
as obras civis e extravasar o conteúdo fluido que retinham, os empreendedores
da obra e as autoridades governamentais ficam desconfortáveis com a
possibilidade de haver uma cobertura midiática interessada em trazer à tona
elementos que auxiliem a clarificar a gênese da crise. Ou seja, incomodam-se
com a possibilidade de que jornalistas perscrutem o desastre no que concerne
aos atores que se moveram nas arenas políticas para viabilizar o
empreendimento; às violências havidas progressivamente contra as comunidades
afetadas; às enganosas comunicações precedentes sobre a eficácia das medidas de
segurança relacionadas às obras civis e, por fim, às lógicas tácitas de
partilha privada de benefícios da implantação do projeto e de socialização dos
riscos decorrentes. Para evitar essas miradas incômodas, essas figuras de poder
podem agir antecipadamente para enquadrar as interpretações jornalísticas nas
ações emergenciais de resposta, as quais abrangem medidas de resgate e de
reabilitação (abrigo, alimentação e atendimento de saúde, basicamente). Os
representantes de órgãos de emergência é quem são incumbidos de interagir com
os veículos de comunicação e deslocar a atenção dos mesmos para as operações
espetaculares de resgate — onde é reconfirmada a figuração herói-vítima — e
para as práticas de solidariedade de voluntários, desviando das questões de
fundo. Tais veículos viabilizam que responsáveis e autoridades digam à
sociedade que tais ou quais providências de resposta e remediação foram tomadas
e que as comunidades afetadas se tornaram o centro de suas preocupações,
criando cortinas de fumaça que evitam a menção às alianças político-econômicas
pregressas que respaldaram a permissividade na produção dos riscos e no
desencadeamento da tragédia. Assim, nos vários estágios de convivência com
barragens o jogo de revelar e esconder a relação social deteriorada está em
curso. Quando algo dá muito errado na implantação, operação ou manutenção de um
desses monumentos à técnica, produzidos por aqueles que são considerados como “homens de visão” (Ribeiro, 2008), e as obras vão abaixo, a crise aguda decorrente
pode desnudar o quando de irresponsabilidade socioambiental subjazia aos
requerimentos anteriormente atendidos para viabilizá-los (Sevá, 2008).
O desastre é um
acontecimento trágico caracterizado por um considerável estresse coletivo
(Fritz, 1961; Quarantelli, 1998), no qual a socialização de efeitos colaterais
mais agressivos da produção sociotécnica é levada ao paroxismo. Eis que as
fronteiras tecnicamente projetadas para fazer o empreendimento, tidas até então
como sólidas, fixas e operando com regras próprias, transbordam visivelmente
para a dinâmica dos lugares do entorno de um modo que os esfacela subitamente,
deteriorando e inviabilizando a pluralidade de sua constituição. O desastre explicita
a fragilidade dessas fronteiras tecnicamente delineadas, nas quais passaram a
crer também os diferentes espaços de jusante que se julgam autônomos, embora
estivessem em relações de subordinação. Abaixo da obra que se esvai, vidas
humanas são ceifadas, produzindo sofrimento ao universo de vínculos sociais que
as mesmas mantinham; ecossistemas sensíveis são arrasados e sua fauna e flora
nativas são destruídos; recursos naturais vitais, como a água e solo, são
contaminados; o solo também é carreado, inviabilizando a produção agrícola,
pecuária ou florestal; os diversos usos sociais, públicos e privados, do
ambiente construído, são inviabilizados, circunstancial ou definitivamente,
devido à danificação ou destruição de infraestrutura básica (de energia, de
água potável), de moradias, de instalações prediais, de equipamentos e
materiais de serviços essenciais à população local (escolas, postos de saúde);
há perdas materiais e simbólicas marcantes na base espacial de sustento e de
reprodução social e de convivência das comunidades afetadas (perda de áreas de
pesca, de plantio, de meios de trabalho urbano e rural, destruição de
estabelecimentos religiosos e de patrimônio histórico, perda de objetos de
memória); as destituições súbitas e imprevistas à coletividade afetada forjam
uma mescla de tristeza e exaspero coletivo, o que incrementa nela desesperanças
e incertezas quanto ao futuro imediato. Conexões perversas, até então ocultadas
por representações dominantes sobre fronteiras consideradas imutáveis, se
explicitam. Em meio a isso, uma situação ambígua se revela. Apesar de o
desastre suscitar mobilização social, essa não tem tido a força necessária para
ultrapassar a barreira dos interesses estabelecidos e alterar o intento de
manutenção das mesmas práticas de intervenção sociotécnica no território.
A indagação que
subjaz é: a quê se deveria essa falta de vitalidade de forças sociais operantes
no contexto de crise aguda para propulsionar um embate que resultasse na
reflexividade dos produtores da crise? Muitos podem ser os caminhos analíticos
para tentar responder a essa questão, cuja elucidação mais ampla passaria por
um esforço interdisciplinar ou transdisciplinar, indo ou ultrapassando o campo
da Administração Pública ao do Direito, da Antropologia à Comunicação Social,
da Economia à Ecologia, necessitando ter em conta o contexto sociocultural e
institucional local. Nesse estudo, focalizamos o contexto brasileiro de colapso
de barragens e adotamos uma perspectiva sociológica para salientar, de um modo
preliminar, dois aspectos do problema os quais julgamos devessem ser
aprofundados em estudos posteriores. O primeiro deles se refere à disjunção que
a gestão deste tipo de crise faz entre os seus elementos constitutivos de
caráter social, técnico, político-institucional e espacial, enquanto o segundo
é relativo ao modo relativamente condescendente como diferentes veículos de
comunicação amplificam a cadeia de sentidos sobre o desastre que é concebida
por autoridades e técnicos governamentais. Para tratar de tais aspectos,
balizamos referências para constituir um pano de fundo analítico e enfatizamos
conclusões de nossos estudos anteriores no assunto. Em seguida à nossa crítica
ao enquadramento oficial da crise nas fontes documentais oficiais, e apenas a
título ilustrativo, elencamos sinteticamente três casos recentes ocorridos em
regiões distintas do Brasil.
Sob um ponto de
vista sociológico, desastres associados a colapso de barragens, como os demais
tipos de desastres, devem ser vistos simultaneamente como situação e como
processo (Valencio, 2013). Isto é, ao nos determos sobre a circunstância
disruptiva não devemos perder de vista seus nexos com as lógicas operativas que
levaram àquela crise. Mas, também sob um prisma transdisciplinar, conviria que
os desastres fossem analisados a partir de um esforço de recursividade e numa
perspectiva holográfica; isto é, respectivamente, enxergando que os elementos
que o produzem são também produtos da crise e que diversos ângulos podem ser
vistos simultaneamente, de um modo que cada qual auxilia a compreender aos
demais (Morin, 2008). Quando tratadas em conjunto, tais referências —
situação-processo, recursividade e perspectiva holográfica — permitem construir
variados enfeixamentos temporais e de escala, articulando focos panorâmicos e
de minúcias bem como sincronizando variadas facetas que se explicam mutuamente.
Esse intuito analítico é favorecido por estudos coletivos, polifônicos e de
longa duração, mas tentaremos dar alguns passos nessa direção.
O espaço da crise
Desde a
década de 1990, tem havido esforços teóricos sistemáticos no campo da
sociologia para interpretar a desenfreada produção social dos riscos que
caracterizam esse estágio da modernidade. Giddens (1991 e 1995) e Beck (1992,
1995 e 1999) são os expoentes nessa discussão; o primeiro por destacar o quão
efêmeras se tornam as relações sociais correspondentes às transformações da
base física global no contexto da alta modernidade e que o próprio corpo, convertido
em objeto dócil ao mercado, participa de uma concepção de bem-estar fundada na
produção de resíduos, de poluição e dos desastres decorrentes, enquanto o
último se debruça mais detidamente sobre as decisões produtivas que sempre
comportam o aparecimento de riscos. Nas palavras de Beck, “riscos sempre
dependem de decisões, ou seja, pressupõem-nas, emergem quando há a
transformação de incertezas e perigos em decisões [...] As ameaças
incalculáveis da sociedade pré-industrial são transformadas em riscos calculáveis”
(Beck, 1999: 75).[1]
Precedentemente a tais contributos, e no campo da antropologia, a obra fulcral
de Douglas e Wildavsky (1983) já havia jogado luzes potentes sobre a
racionalidade adotada por grandes corporações industriais para produzir
artefatos que impunham ao derredor ônus ambientais consideráveis. O avanço do
processo de acumulação corresponde ao incremento dos riscos. Os desastres são a
plena manifestação dos riscos conhecidos, ignorados e inimagináveis (Lourenço,
2015). Isto é, os desastres desnudam o quão subestimado e incontrolável pode
chegar a ser um risco desencadeado pelas práticas de um certo ator e entretecido
com riscos produzidos alhures, numa sinergia que os faz ganhar feições
complexas e em fronteiras de responsabilização que são objeto de litígio. Como
acontecimento social trágico associado a um evento físico, mesmo os desastres a
que o mainstream designa como natural deveriam ser problematizados
quanto aos sujeitos e mecanismos sociais que atuam para produzi-lo
(Quarantelli, 2005).
Diante o
desastre, diferentes meios de comunicação procuram obter informações rápidas e
inéditas para produzir a notícia a respeito. A superficial descrição das causas
e a menção a um rol de providências emergenciais adotadas pelas autoridades
governamentais e por voluntários tem sido considerado material suficiente para
a maioria das matérias jornalísticas nesse assunto. Ocorre que tais informações
são oriundas daqueles que não apenas coordenam as ações oficiais de resposta ao
desastre, mas que se mostraram incapazes de impedi-lo, viés que acaba
impregnado no conteúdo da notícia. Nos estudos sobre desastres, há décadas, tem
havido uma vastíssima discussão sobre o papel dos meios de comunicação nesse
contexto de crise e não é o propósito aqui apresentar o panorama e evolução
desse debate, o que fugiria do tema central desse estudo, que focaliza o
colapso de barragens no contexto brasileiro. Obras consagradas, como a
coletânea organizada por Pidgeon, Kasperson e Slovic (2003), dedicada a
analisar, sob diferentes ângulos, a aplicabilidade e as limitações do quadro
conceitual sobre amplificação social de riscos (o sarf), ao qual sobretudo o segundo e o terceiro autor haviam
delineado nas duas décadas anteriores, e coletâneas recentes, com a intitulada Periodismo
y desastres, organizada por Amaral e Ascencio, que trata do que “o
jornalismo faz com desastres e o que os desastres produzem no jornalismo,
buscando, portanto, os limites e as capacidades da atividade jornalística” (Amaral
e Ascencio, 2019: 17). Abaixo destacamos apenas alguns dos contributos que, ao
nosso ver, favorecem a compreensão preliminar acerca do jogo de revelação e ocultação
de que participam gestores da crise e meios de comunicação, a fim de que
apontemos uma resposta provisória à indagação acima formulada.
Por um lado, e conforme dissemos, as informações prestadas pelos
gestores da crise ao público em geral através dos meios de comunicação são
profícuas em mencionar providências emergenciais para, assim, esvaziar
quaisquer tentativa de inquirição acerca das relações sociopolíticas que
sujeitaram o lugar a um objeto técnico que o ameaçava e que concretizou essa
ameaça num evento disruptivo. Por outro lado, essa mediação jornalística não é
isenta. O mercado de notícias é feroz e ligeiro, e veículos de comunicação
sujeitados à sua dinâmica avaliam que serão melhor abastecidos de informações
sobre o desastre ao acompanharem in loco os dramas sociais durante a fase aguda da
crise, o que é possibilitado ou favorecido por intermédio de relações
afáveis com as autoridades competentes, representadas pelos órgãos atuantes nas
emergências que coordenam as ações no terreno, os quais dão o aval para a
presença das equipes de reportagens na zona quente (Valencio e Valencio,
2018a). Ao referir-se a essa articulação entre imprensa e autoridades para
construir interpretações sobre o desastre baseadas na ideia de pânico e de
controle social mediante o soar de alertas de emergência, Scanlon, por outro
lado, menciona que essa aliança pode amortecer os rumores que suscitam numa
dada comunidade níveis de apreensão injustificáveis (Scanlon, 2011). Ademais, o apelo sistemático dos gestores da
crise para que a mídia se detenha sobre o recorte de imediatas providências que
estão sendo tomadas em prol dos grupos afetados, pondo a sua atenção não apenas
nos dramas pessoais dos grupos afetados, mas também nos sacrifícios pessoais
dos técnicos que atuam diuturnamente na emergência,[2]
visa desestimular a identificação de nexos causais bem como abordar os novos
conflitos derivados do desastre. Nesse último aspecto, referirmo-nos às
assimetrias nas disputas legais em torno do processo de ressarcimento às
vítimas, dado o cipoal de mecanismos legais e de interpretações da lei aos
quais o empreendedor lança mão para nortear uma compreensão jurídica míope
sobre as suas responsabilidades e obrigações diante os grupos afetados e suas
expectativas de reparação.[3]
Embora ocorra, a cobertura midiática sobre essa faceta jurídica costuma ser
discreta e não tem o apelo noticioso da fase aguda da crise. Se fazendo passar
por uma matéria meramente descritiva sobre fatos, as notícias sobre desastres
produzem uma construção interpretativa relacional, que tanto atenua quanto
acentua as disputa entre os atores focalizados, ou entre os entrevistados e o
público, conforme discutem Amaral et al., que complementam: “A intervenção
mais crítica de jornalistas [...] mobiliza sentimentos universais, como indignação,
solidariedade e piedade [...] há Modos de Endereçamento específicos colocados
em funcionamento, que não estão presentes em outros momentos” (Amaral et al.,
2010: 5).
O mercado de notícias sobre desastres pode ensejar uma amplificação de
aspectos técnicos relacionados às obras quanto uma abordagem mais focada em
dramas pessoais. A falta de integração dos inúmeros aspectos que pululam, sem
se articular a parte e o todo, torna o problema muito pulverizado e as notícias
vão, assim, perdendo o interesse do público pelo enredamento precário. Há
também o aspecto de que os jornalistas procuram informações muito específicas,
pois, segundo Scanlon “um problema causado pelos jornalistas é que nos estágios
iniciais do desastre — quando ninguém sabe o que está acontecendo — eles
demandam informações específicas sobre danos, destruição e vítimas fatais” (Scalon,
2007: 417).
Práticas de reportagem que ajustam a performance dos sujeitos afetados
na tragédia – modulando as suas gramáticas verbais e gestuais dentro de um
ritmo e espaço coadunado ao veículo audiovisual ou impresso – os violentam para
fazê-los caber na confirmação do discurso dominante (Valencio e Valencio,
2018b). A interação jornalística com vítimas de desastre, isto é, com aqueles
que se encontram física, social e psicologicamente descompensados — pelo drama
vivido em termos pessoais e coletivos e cujas dimensões nem ainda lhes são
totalmente claras —, tem sido um objeto de constante discussão nos estudos
sobre comunicação e desastres, como os de Fischer (2008), que salienta que a
imprensa pode disseminar informações que causam pânico e podem até evitar que
os serviços de emergência que acorrem ao local se sintam seguros em realizar o
seu trabalho. Embora o efervescente ambiente virtual e alternativo de produção
de notícias esteja também se prestando ao aprimoramento de ações de resposta
aos desastres, tais como no referente ao uso de mídias sociais pelos órgãos de
Defesa Civil e Bombeiros para emitir alertas de emergência (Alexander, 2014),
também é preciso considerar que a capacidade de amplificação da notícia pelos
grandes veículos é forte. Tanto no ambiente de desastres como no de guerras,
essas vozes potentes costumam ser as mais autoritárias, conforme assinalado por
Cottle (2014), quando comenta que o contexto global tem acelerado as
estratégias de transmissão da informação e, quando se trata de crises, as vozes
com maior expressão política tem se valido dos holofotes para legitimar a sua
atuação centralizadora, ainda que as vozes dissidentes lutem para marcar
presença e apresentar visões alternativas do problema. Sobre isso, Murdoch et
al. aludem a que “o público leigo não é apenas um espectador passivo do
jogo em campo e um absorvedor de informações e mensagens. Eles são
consideravelmente mais ativos do que isso, levando suas próprias ‘capitais’ a
darem suas respostas ao que estão vendo e ouvindo” (Murdoch et al.,
2003: 164).
Como a
experiência de sofrimento social dos afetados transborda das providências
tomadas a seu favor e das indagações jornalísticas que lhes são feitas sobre o
seu drama, estes encontram poucos canais de expressão para a
multidimensionalidade de seu padecimento ou canais muito pulverizados quanto ao
público que alcançam. O ambiente de disciplinamento social ao qual os
sobreviventes são sujeitados — no qual são extenuados psicologicamente por
recorrentes cadastrados sociais, precisam lutar para angariar o provimento
mínimo de abrigo, víveres, consultas médicas e medicamentos, acatar os técnicos
de órgãos de emergência que lhes ditam ordens, supondo estarem fazendo o melhor
que podem dentro do que foram capacitados a fazer em situações afins —
inviabiliza a estes tecerem críticas abertas em relação ao modo de socorro que
estão recebendo, com receio de retaliação, já que há um longo processo de
reivindicação de ressarcimento no qual o seu comportamento social é monitorado.
Muito do que é repercutido, no auge da crise, sobre a evacuação compulsória
maciça dos moradores em áreas passíveis de total ou parcial destruição, sobre a
necessidade desses se dirigirem a abrigos provisórios mal organizados, de se
cadastrarem junto aos serviços de assistência social e o registro audiovisual
de suas manifestações de gratidão ao auxílio recebido dos heróis do resgate e
do voluntariado, toma o lugar de discussões que deveriam ser inadiáveis, como
acerca das dinâmicas socioespaciais que produzem esses riscos e os reinstaura
no lugar após um desastre.
Assim, tanto os
focos adotados pelos meios de comunicação quanto aqueles que deixam de adotar
podem fazer com que as condições sociais de produção de riscos sejam mantidas e
que o atendimento às vítimas transite entre a leve insuficiência à profunda
inadequação. Como mencionam Tierney et al., a
mídia pode contribuir para incrementar o pânico, e não apenas atenuá-lo, e
instaurar um clima de guerra onde há apenas pessoas famintas e sedentas
necessitando serem resgatadas acolhidas após a destruição de suas moradias (Tierney
et al., 2006), no que complementam Gaitán et al. (2013) ao
refletirem acerca de como a realidade construída pelos meios de comunicação tem
a potência de moldar e distorcer eventualmente a percepção do acontecimento
focalizado, incluso a agenda pública de como será enfrentado.
Ademais, os
parâmetros que regem a percepção institucional pública acerca de conexões entre
diferentes espaços podem não ser muito sofisticados. Em diferentes escalas e
atividades da vida social local — das moradias esparsas em núcleos rurais aos
adensamentos urbanos, do centro comercial ao administrativo, das atividades
agropecuárias às plantas industriais — distintos atores desenrolam suas
rotinas, estabelecem interações com as estruturas institucionais presentes e
com a base biofísica de um jeito relativamente autônomo. A fragmentação e
transformação contínua do espaço, através de uma multiplicidade de atores com
características distintas de ocupação do solo e de preocupação socioambiental
produz uma intrincada dinâmica de riscos que escapa aos olhos das autoridades
locais que se veem mais premidas a encontrar nesse ritmo de alterações espaciais
uma equação auspiciosa entre a arrecadação e as despesas públicas. Com
diferentes capacidades técnicas de monitoramento e fiscalização e interesses
político-partidários, as prefeituras municipais lidam com os desafios da gestão
pública para antever os riscos de certo tipo de uso e ocupação do solo — por
exemplo, exigindo de certos atores econômicos garantias prévias à instalação,
como existência de comissões internas e equipamentos de segurança, além de
planos de contingência para, então, se emitir alvarás de funcionamento. Há
outros riscos que ultrapassam os limites de sua jurisdição territorial e exigem
discussão em outros fóruns, como no comitê de bacia hidrográfica do qual
participam, ou, ainda, no âmbito estadual ou federal. Muitas das discussões sobre
riscos sinérgicos e incertezas pouco avançam em vista de agendas que priorizam
lidar com problemas prementes do cotidiano — por exemplo, a necessidade de
mitigar os efeitos de uma crise hídrica — enquanto os riscos presumíveis
parecem estar bem controlados pelas políticas de segurança de cada um dos
agentes que os produzem. Porém, quando imersas em um desastre, as autoridades
de diversos níveis são instadas, pelo desenrolar dos acontecimentos, a se darem
conta de que as suas premissas de controle direto ou indireto sobre os riscos
eram falsas e os espaços antes considerados autônomos, e que se entendiam como
inalcançáveis, estavam ainda encadeados hierarquicamente por agentes cujas
práticas tinham diferentes potenciais de produzir danos a outrem.
Um desastre
revela enredamentos espaciais e sociais imprevistos e inquietantes. Por
exemplo, o volume assustador de água liberada, em curto espaço de tempo, pelo
colapso de uma barragem indica que houve um processo organizacional de decisão
ou omissão, associado a práticas técnicas interventivas no território, que
desencadearam danos e prejuízos multifacetados para o espaço do empreendimento
e a jusante. Uma vez que os desastres têm uma natureza social, proveniente de
equívocos deliberativos ou operacionais (ou ambos), o contexto de ações de
emergência também passa a exigir outro processo de tomada de decisão por
agentes públicos, por vezes, em articulação com os mesmos agentes que
provocaram a situação trágica. Embora as responsabilidades empresariais exijam
uma participação substantiva nessas ações emergenciais, é preciso notar dois
aspectos. O primeiro, o de que a racionalidade que olvidou de consequências
socioambientais nefastas de sua atuação não se dissipa conforme a barragem se
desmantela; ao contrário, por vezes tal racionalidade se reafirma e toma
visibilidade na roupagem de uma negação de responsabilidades, culpabilizando a
natureza — as chuvas fortes ou incessantes — pelo evento catastrófico, ou
através de uma performance assistencialista de cuidado aos afetados enquanto
esses reivindicam direitos amplos de reparação. O segundo, o de que estratégias
colaborativas do empresariado com o ente público podem servir para capturá-lo
material, técnica e simbolicamente devido à precariedade das condições deste atuar.
Podem vir a se imiscuírem a um ponto tal que, para a população atendida, fica
paulatinamente difícil identificar as fronteiras onde começa e onde termina a
empresa e o ente público.[4]
Um colapso de
barragem impõe uma nova temporalidade, novas dinâmicas sociais e novos sistemas
de sentidos sobre o espaço. Os fluidos que se espraiam quando as obras cedem
dissolvem as rotinas de espaços de jusante que se consideravam autônomos;
coisas e pessoas vão se se entrecruzar numa nova totalidade, na qual o todo é
feito ambiguamente de fragmentos — de escombros, de lama, de contaminação, de
vidas esgarçadas dos sobreviventes e de restos mortais — que exige uma
ressignificação. Quando uma onda avassaladora de água, lama e rejeitos vai
direção a uma comunidade, providências imediatas de interdição de vias que
serão atingidas devem ser tomadas pelos órgãos de emergência para evitar riscos
à vida dos transeuntes; uma vez que tais vias foram destruídas ou danificadas,
e comunidades ficam ilhadas, o restabelecimento da circulação de pessoas,
veículos e mercadorias depende da construção emergencial de pontes e
desobstrução de vias, das quais participam não apenas os responsáveis pelo
desastre, na contratação de serviços de terceiros, mas os setores de limpeza
pública e de obras locais além de, em alguns casos, os batalhões militares de
engenharia e construção. A força da água que destrói uma moradia e mata animais
no caminho não consegue derrubar um muro no quintal de uma casa, graças ao que
o mesmo serve aos moradores e vizinhos como um ponto alto no qual podem subir e
se manterem circunstancialmente a salvo e visíveis enquanto esperam embarcações
ou helicópteros de resgate; os documentos no fórum de justiça e no tabelião de
notas ficam encharcados e os computadores, pelo mesmo motivo, perdem as suas
condições de uso, enquanto os funcionários ficam angustiados em terem que se
dividir entre as incumbências de recuperar alguns dos documentos na repartição
ou salvarem alguns de seus bens privados e dar apoio aos familiares em sua
moradia inundada; a enxurrada arrasta para fora das pequenas mercearias e
farmácias os produtos que estavam à venda nas prateleiras; diretores de escola
abrem as portas do estabelecimento para servir de abrigo provisório aos
desalojados; queimam-se a parte elétrica dos refrigeradores e há perda total de
mercadorias perecíveis em estabelecimentos cujos proprietários não tinham
atinado ou não tinham possibilidade de adquirir apólice de seguro que cobrisse
tal tipo de situação; as águas avançam com grande vazão em direção ao sistema
de saneamento — de captação e tratamento de água assim como de coleta de água
servida — e invadem instalações industriais e comerciais onde há produtos
químicos, produzindo uma sopa contaminante e tóxica que sujeita a riscos
ampliados de saúde às pessoas que permanecem em contato com essa fonte enquanto
prestam apoio mútuo, tentam resgatar alguns de seus pertences, procuram
compreender o que sucedeu no seu lugar.
Enfim, tal como
aludiu Santos (1995) no referente à tessitura dinâmica entre sistemas
constituídos em diferentes temporalidades, um desastre é um catalizador de
sistemas de objetos e de ações que, até certo ponto compreendidos como
dissociados, vão se associar involuntariamente para definir um novo espaço, o
espaço da crise, no qual também uma nova trama passa a enredar os atores. As
fronteiras dos efeitos colaterais do empreendimento tornam-se movediças em
relação àquilo que foi aludido na documentação entregue para a análise do poder
público, o qual autorizou a implantação do projeto. Licenças de instalação e
operação concedidas com base na alusão a um restrito elenco de riscos, cuja
menção estivesse em consonância à capacidade organizacional objetiva para gerenciá-los
e, no geral, reportando a incidentes circunscritos à sua planta[5] são
confrontadas com cenários reais complexos, jamais aventados. A cartografia da
planta que se apresenta como plenamente gerenciável não se coaduna com aquela
que reporta à destruição e danificação de estruturas quando a barragem
arrebenta, a qual, por seu turno, não é totalmente coincidente com aquela que
avalia a contaminação do lençol freático e a da ictiofauna, para ficarmos em
alguns exemplos sobre como a sobreposição dessas cartografias pode demonstrar o
quão nuançadas são as fronteiras do desastre transbordado da planta do
empreendimento.
Como os danos
extravasam da planta do empreendimento e se espraiam no território alheio, a
capacidade de intervenção imediata do empreendedor e da autoridade pública
local logo mostram as suas insuficiências. As autoridades locais apercebem que
as circunstâncias de emergência exigem o acionamento de outros atores, os quais
estão noutra estrutura ou escala de poder[6] e a
presença da mídia na crise aguda e no terreno no qual esses atores se
concentram é um fator que contribui para que alguns desses busquem evidenciar o
seu protagonismo na gestão da crise em detrimento de outros que podem estar
fazendo notáveis esforços, mas que ficam obscurecidos perante a opinião pública.[7]
Um derradeiro
aspecto a salientar nesse jogo de revelar e ocultar diz respeito ao conteúdo
dos decretos de emergência nesse espaço intermunicipal da crise. Enquanto o
empreendimento apresenta uma circunscrição territorial específica, que está
adstrita à jurisdição de um ou mais municípios ao derredor — isto é, compondo
uma área de concessão a qual abrange a barragem, o lago do reservatório, suas
margens definidas pelo maximum maximorum e uma área imediatamente a
jusante —, o colapso da barragem incide sobre um conjunto ambiental e de
propriedades públicas e privadas de terceiros que pode abranger outras
jurisdições municipais, cujas autoridades locais, surpreendidas com a aparição
de efeitos colaterais do empreendimento em sua base territorial de gestão e sem
capacidade operacional para responder a contento, se veem compelidas a
decretação situação de emergência e a requerer apoio externo para lidar com os
danos e prejuízos ali manifestos. Dentre as complicações que enfrentam está a
de que esses municípios que não têm a barragem em seu território, mas sofrem os
efeitos de seu colapso, são premidos a não aludirem centralmente a esse evento
disruptivo em sua declaração de emergência e apenas mencionarem os efeitos
socioambientais secundários, como a ocorrência de inundações. As inundações aparentam ser iguais a
quaisquer outras a que o município enfrentou esporadicamente.
A lógica de
classificação técnica dos desastres é produzida pelo sinpdec e fundamenta o modo como cada autoridade municipal
deve reportar o evento no seu território, corroborado por portaria ministerial.
Isso gera uma questão de fundo, pois sem poder vinculá-lo ao fator causador —
no caso, ao colapso de barragem —, os municípios que reportam a eventos
secundários geram registros documentais que serão eventualmente agrupados, para
fins técnicos ou científicos, para compor outras análises, deturpando-as e
favorecendo o amortecimento de responsabilidades públicas e privadas sobre os
danos vivenciados por suas comunidades afetadas. A segmentação da informação
pública na emissão individualizada de declarações municipais de emergência
oculta a conexão entre elas. O Código Brasileiro de Desastres (cobrade),[8] que
categoriza o desastre relacionado ao colapso de barragem num tipo específico,
qual seja, o de desastres tecnológicos, e o desvincula das inundações,
classificadas como um tipo de desastre dito natural, constrói uma disjunção que
instrumentaliza uma consciência alienada sobre os processos e relações de causa
e efeito entre os mesmos. As fragmentações territoriais, administrativas,
documentais e denominativas entre aspectos de um mesmo desastre forja uma base
de informações de defesa civil que propende a ocultar o verdadeiro tamanho do
problema e, por conseguinte, a não subsidia a discussão pública sobre a
implantação de novas barragens, bem como sobre os riscos daquelas ora
existentes.
Dois pontos se
entrecruzam aqui. O primeiro se
relaciona ao modo como os responsáveis pelo empreendimento e autoridade lidam
com a ocorrência. Por vezes, os técnicos avaliam que o desenrolar de um evento
crítico não será tão grave a ponto de acionar alertas e avisar a tempo os
serviços públicos de emergência (Defesa Civil, Bombeiros e afins) e garantir a
integridade espacial a jusante. Repetem-se casos nos quais as comunidades a
jusante são alertadas por membros de sua rede primária de relações que residem
a montante, na região do reservatório que se esvazia rapidamente (Valencio,
2009). Porém, quando demandadas a tomar providências, autoridades locais são
pegas atônitas e podem considerar que os danos e prejuízos das comunidades não
exigem decretação de emergência porque pressupõem que seus membros irão se
refazer ao seu próprio modo ou, ainda, porque julguem que a tramitação
burocrática para as instâncias superiores seria muito complicada e não
compensaria dispender tempo com isso. O segundo ponto é o de que a cultura
política e técnica de disseminação de barragens pelo Brasil se fortaleceu a
partir de um apelo de difusão do progresso, que fez com que os benefícios
auferidos particularmente fossem vistos como algo compartilhado socialmente. A
cadeia de sentidos econômica e politicamente disseminados é transpassada por um
ambiente interacional que forja a ideia de plena segurança na técnica que
materializou tais projetos. Essa arquitetura de confiança social constrange a
crítica social a esse tipo de empreendimento e discussões abertas sobre
eventuais riscos derivados de falhas de execução, de operação ou de manutenção.
Porém,
uma vez que o desastre ocorra, não são somente as obras que se desmaterializam
diante os olhos de todos. Como Dombrowsky (1998) advertiu, ali também
desmoronam os esquemas prévios de confiança social nos atores técnicos e
políticos implicados, desde os que planejam, executam, operam e monitoram tais
obras civis ao conteúdo científico que embasa os projetos, passando ainda pelas
rotinas de fiscalização. Sabedores disso, os grupos implicados acionam
mecanismos para se preservar dessa confrontação, como alegando que, se algo
fugiu ao controle, é porque a “natureza” se comportou de maneira atípica,
“desobedecendo”, por assim dizer, os pressupostos de engenharia, os cálculos em
relação aos quais o empreendimento mantinha a sua aura de perfeição. Chuvas
fortes ou concentradas ou, ainda, suspeitas de ocorrência de inesperados
eventos sísmicos fazem parte dos argumentos em torno da natureza indócil que
teria desafortunadamente ultrapassado os rigorosos limites de segurança
adotados. Todavia, ao querer afastar de si as responsabilidades, tais alegações
poderiam abrir novas inquirições, tais como as que dizem respeito a como o
conhecimento acerca de determinados fenômenos meteorológicos ou geológicos, por
mais excepcionais que fossem, puderam ter sido relegados nas considerações
práticas sobre a exequibilidade e os custos do empreendimento. Mesmo quando
instituída a Política Nacional de Segurança de Barragens (pnsb), no ano de 2010, que versou sobre
que tipos de riscos deveriam ser mantidos sob vigilância e quais medidas
deveriam ser preventivamente adotadas, as discussões que a deflagraram bem como
a que dela derivaram foram muito ciosamente restritas à comunidade técnica,
longe do grande público, a fim de que não espargissem sementes de desconfiança
social que eventualmente comprometessem o intento de manter o calendário de
investimentos de longo prazo associados a tais obras.
Diante o
exposto, três desafios dos quais tratamos em estudos anteriores permanecem em
aberto, a saber:
a) o de adensamento da perquirição
sobre a dimensão sociológica das falhas que levam ao colapso de barragens:
obras recém-inauguradas têm estado sob risco de colapso ou efetivamente
colapsam, circunstância essa onde não cabem alegações em torno de questões de falta
de manutenção. Tudo ali é novo, desde os materiais ao conhecimento científico
disponível sobre novas técnicas e sobre eventos ambientais tidos como atípicos
(Valencio e Gonçalves, 2006; Gonçalves, Marchezini e Valencio, 2012). Qual seria
a natureza das relações sociais que permitem à técnica materializar imensos
objetos no território se sua crença em os controlar não passa no teste da
realidade?
b) o de crítica ao
enquadramento socioambiental reportado nos planos de contingência: quando há o
evento disruptivo, os planos de contingência se mostram igualmente desajustados
ao espaço que sofrerá os efeitos colaterais. Como tais planos são padronizados,
assim como os EIAs/RIMAS, oriundo de escritórios de assessorias técnicas nas
grandes capitais e que visam cumprir protocolarmente exigências burocráticas, o
seu conteúdo não condiz com as características e dinâmica socioambiental
concreta na qual o empreendimento interfere (Valencio, 2017) e, portanto, as
providências ali recomendadas ficam muito aquém daquela que a crise aguda
requer;
c) o de enredamento espacial entre
ocorrências que, nos decretos municipais, foram fragmentados: em média, 2.5
municípios têm a sua área territorial diretamente afetada não apenas pelo
conteúdo líquido vazado dos reservatórios, mas por todos os detritos que o
mesmo carreia consigo, provocando destruição considerável da base física de
jusante ou efeitos de contaminação que redundam em prejuízos de difícil
recuperação para os afetados no meio rural e urbano (Valencio e Valencio, 2010).
Para ilustrar a problematização supramencionada, passamos a apresentar
aspectos da informação oficial, bem como excertos de narrativas midiáticas
sobre três casos desenrolados no país nos últimos anos.
Entre a visibilidade e a ocultação
Embora diversos desastres associados a colapso de barragem tenham
ocorrido no país no período de 2003-2017 (15 anos), a base de dados da
Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil (sedec), assentada nas portarias ministeriais de
reconhecimento de declaração de emergência municipal,[9] reportou
apenas dez emergências desse tipo, abrangendo municípios inseridos em cinco
Unidades da Federação (Paraíba, Pernambuco, Sergipe, Piauí e Minas Gerais).
Esses dez casos formam seis diferentes conjuntos: quatro deles com apenas um
município isolado reportando o desastre (a saber: Alagoa Grande/PB, em 2004;
Miraí/MG, em 2007; São Vicente Ferrér/PE, em 2008; e Telha/SE, em 2009); outro
conjunto com dois municípios associados a um mesmo desastre (a saber: Cocal/PI
e Buriti dos Lopes/PI, no ano de 2009), e o último conjunto com quatro
municípios atrelados num mesmo desastre (a saber: Mariana/MG, Barra Longa/MG,
Rio Doce/MG e Belo Oriente/MG, no ano de 2015) (Figura 1).
Figura
1. Conjuntos de municípios que
mencionam rompimento de barragem, segundo
as portarias de reconhecimento ministerial de
decretações municipais de emergência, período de 2003-2017
Fonte:
elaboração própria a partir de informações da SEDEC.
Porém,
se agregarmos a estes municípios aqueles que, na referida base de informações,
mencionaram os efeitos secundários do evento (inundações ou alagamentos, por
exemplo) e, ainda, adicionarmos informações do Ministério Público Federal
acerca de municípios que não decretaram emergência mas que sofreram danos
consideráveis, vemos que o âmbito espacial se amplia e explicita um novo tecido
espacial do desastre. Aí estão nexos territoriais ocultos que o modo atual de
organização da informação de defesa civil deixa escapar. Conforme ponderaram Su
et al (2014), nexos ocultos podem ter
fortes vínculos com os aparentes — isto é, a influência da dinâmica de um sobre
a do outro não deve ser desconsiderada — e, uma vez identificados e situados,
traduzem com maior fidedignidade o tamanho do sistema do qual participa.
No caso em
tela, três tipos de vínculos estão presentes, a saber:
a) entre municípios cujas declarações
de emergência reportaram concomitante o colapso da barragem como causa do
desastre;
b) entre os que reportaram o colapso de
barragem e os que mencionaram outro problema, como inundações;
c) entre ambos acima e os que não
emitiram decreto.
Ademais, nessa composição ampliada, vínculos
interestaduais num mesmo desastre passaram a ter visibilidade, como quando, em
2007, o desastre atravessou os limites do estado de Minas Gerais (MG) em
direção ao Rio de Janeiro (RJ) e, também, em 2015, quando o desastre atravessou
os limites do estado de Minas Gerais (MG) em direção ao estado do Espírito
Santo (ES), ampliando de cinco para sete as Unidades Federais de ocorrência (à
lista anterior, acresceu-se o estado do Rio de Janeiro e o do Espírito Santo).
Continua-se com os mesmos seis conjuntos informados na figura anterior. Porém,
a composição desses se altera em metade das situações, as quais são
substancialmente incrementadas. Apenas dois conjuntos permanecem com um
município isolado reportando o desastre (Telha/SE, de um lado e São Vicente
Ferrér/PE, de outro, ocorridos respectivamente em 2008 e 2009). Cocal/PI e Buriti
dos Lopes/PI continuam associados no desastre ocorrido em 2009 sem que houvesse
nenhum acréscimo espacial. Porém, antes isolado, o município de Miraí ganha a
companhia dos municípios de Muriaé/MG e Itaperuna/RJ no desastre ocorrido em
2007 ao passo que Alagoa Grande/PB ganha mais três municípios paraibanos
associados ao mesmo desastre causado pelo colapso da barragem de Camará, quais
sejam, Alagoa Grande/PB, Mulungu/PB e Areial/PB. O colapso da barragem de
Fundão, reportado pelo município de Mariana e outros três municípios, ganha a
companhia de mais 34 municípios que reportaram apenas os efeitos colaterais
(Figura 2).
Assim como a base de informações de defesa civil fragmenta aquilo que,
ao nosso ver, deveria estar entrelaçado em termos de informação pública sobre
colapso de barragens, também as narrativas midiáticas deveriam superar a
tendência de descrição acrítica tanto do evento de rompimento da barragem
quanto das providências de resposta. Para deixar essa questão em aberto para
estudiosos de análise do discurso, porém ilustrar o teor de nossas preocupações
sociológicas, tomamos aleatoriamente ilustrações de notícias que foram
veiculadas virtualmente — no período imediato ao colapso e em momentos
posteriores — acerca de três diferentes casos. O propósito foi o de apontar, no
caráter mais geral das narrativas ali produzidas, quais as explicações tendem a
ser dadas para esse tipo de evento.
O caso 1, ocorrido no estado do Piauí (PI), na macrorregião nordeste do
país, aborda o desastre envolvendo a barragem de Algodões 1, inserida no
município de Cocal, a qual colapsou no ano de 2009. O caso 2 se refere ao
rompimento da barragem de rejeitos de Fundão, em 2015, a qual era constitutiva
de um empreendimento minerário no município de Mariana, estado de Minas Gerais
(MG), na macrorregião sudeste do país, o qual foi inicialmente tratado pela
autoridade presidencial como um desastre “natural”, conforme o decreto emitido
em 12 de novembro de 2015; e por fim, o caso 3 aborda o desastre referido ao
conjunto das represas de Paragominas, localizado no estado do Pará (PA),
macrorregião norte do país, que veio abaixo no ano de 2018.
Figura
2. Município declarantes de emergência associada
ao rompimento de barragem (fundo preto), associada a efeitos secundários (inundações,
alagamentos) (fundo branco) e que não decretaram emergência, mas sofreram danos
significativos (fundo cinza)
Fonte:
elaboração própria a partir de informações da SEDEC e do MPF (Brasil, 2017).
Nos
referidos casos, as piores consequências socioambientais não estiveram
adstritas à planta do empreendimento e tampouco ao município de inserção das
obras, extrapolando ambos os espaços. No caso de Algodões 1, soube-se que
técnicos governamentais já haviam identificado previamente a suscetibilidade da
barragem e recomendado a evacuação a jusante; porém, uma avaliação técnica
deliberou que a obra estava segura e autorizou o retorno das famílias quando,
em seguida, a mesma colapsou, havendo mortes, danificação e destruição em dois
municípios (Medeiros, 2013). O caso da barragem de Fundão abrangeu quase
quarenta municípios e as perdas socioambientais havidas — comprometendo a
qualidade das águas, o ecossistema fluvial e múltiplas finalidades sociais ao
longo do rio Doce — tem sido extensivamente estudadas por diferentes campos
disciplinares, incluso no âmbito das ciências sociais, cujos subsídios valiosos
apontam para vinculações entre a adversa dinâmica de mercado das commodities
negociadas pela empresa e o enfraquecimento da política de segurança do
empreendimento cuja barragem rompeu (Milanez et al., 2015), como ainda para o lugar das emoções na mobilização
dos afetados (Losekann, 2018). Sendo o mais recente, datando de 2018, o caso de
Paragominas acende um sinal de alerta sobre os encadeamentos entre barragens
públicas e privadas, legais e ilegais, que se favorecem das águas de um mesmo
rio, onde se tornam perigos conexos através do efeito dominó de obras que,
colapsadas a montante, trazem sobrecarga de fluxos repentinos e volumosos para
as estruturas subsequentes de jusante.
Como se observa
nos excertos noticiosos abaixo, referidos a oito diferentes matérias produzidas por meios de comunicação variados
(de jornais de circulação internacional ao de circulação local e portais de
debates especializados) (Quadro 1), dá-se destaque imediato (no próprio dia ou
nos dias seguintes ao colapso) à vocalização oficial e de especialistas, os
quais relatam que o evento teria sido altamente destrutivo devido a forças
naturais (chuvas fortes, rios transbordantes, sismos), mas complementa-se que
ações de resposta imediata tinham sido postas em curso. Quer-se indicar a
existência de um preparo técnico governamental para lidar com a situação e
proteger às vítimas. Afirmações como a de se tratou de “acidente da natureza”
colocam a culpa numa chuva atípica ou sismos; a de que as ações de resposta
para atender a centenas de famílias desabrigadas se constituíram numa
verdadeira “operação de guerra”, atenuam responsabilidades; a que aludem a
esforços de autoridades civis e militares para “restabelecer a ordem” e
“convocar” a sociedade local para auxiliar no recolhimento de víveres propendem
a uma visão autoritária sobre a dinâmica social. Há uma despreocupação em se
indagar coisas como: que tipo de preparo institucional é esse, que não impede a
tragédia? Ainda mais longe: quais fatores políticos e econômicos e técnicos
produzem-na?
Um contrabalanço discursivo em relação a essa noção de preparo e
proteção institucional aos afetados não vinga de imediato e vem aparecer um pouco
mais tarde, conforme os excertos indicam, hiato de tempo que assenta a slow violence (Nixon, 2011)[10]
contra estes. Isto é, parece não ter havido interesse tempestivo, durante a
crise aguda, para identificar e analisar quais forças sociais tiveram o poder
de reconfigurar o espaço ao seu modo e produzir uma sensação prolongada de
destituição e desamparo, a qual ultrapassa as providências técnicas e
voluntárias tomadas. Somente com o passar do tempo, por vezes, após anos,
emerge centralmente nas notícias uma vocalização popular, através de atos de
protesto e congêneres, que aludem às promessas vazias das autoridades, ao
desprovimento de condições materiais próprias e à falta de apoio institucional
às famílias afetadas para retomarem suas vidas rotineiras. Isso forja um
contrabalanço, porém tardio, ao estardalhaço midiático feito em torno de
autoridades e demais responsáveis que pareciam empenhados em ir a fundo na
apuração do problema e no amparo aos afetados.
Quadro 1. Aspectos na narrativa de diferentes meios de
comunicação
sobre três casos de desastres relacionados a colapsos de barragem
Caso |
Ilustrações sobre o foco das narrativas dos meios de comunicação |
CASO 1 Algodões
1, estado do Piauí, região nordeste, maio
2009 |
Destaques de aspectos do teor de matérias do
site Último Segundo, dos dias 29 e
30 de maio de 2009:[11]
- O
evento de origem teria sido as fissuras na parede da barragem, o que teria
provocado o escape de dezenas de milhões de metros cúbicos de água,
originando uma onda devastadora. - A causa do evento, pelo relato que se colhe
do representante do Instituto de Desenvolvimento do Piauí (Idepi), teria sido
a ocorrência de uma chuva de 106mm durante quatro horas na região da
represa e que, segundo o depoimento do mesmo, seria “um acidente da
natureza”. - Em relação às providências tomadas, o foco
esteve na fala das autoridades e nas ações governamentais, que teriam
sido “uma operação de guerra” em prol dos desabrigados. Menciona a
mobilização de voluntários e de várias instituições públicas envolvidas
(Defesa Civil Nacional, Corpo de Bombeiros, Polícia Militar, Polícia
Rodoviária Federal, Companhia Hidrelétrica do São Francisco) em sistemas de
comando. Criação de comissão oficial para investigar o caso. -
A crise é caracterizada pelas diferentes gradações de afetação humana (953
desalojados, 2.000 desabrigados, 80 feridos leves, 4 mortes, 11
desaparecidos e um total de 2.953 pessoas afetadas), perda de locais de moradia (120 casas destruídas) e cemitérios com
os túmulos revirados pela força das águas. Destaques de aspectos do
teor de matéria no Portal Ecodebate, de 15 de agosto de 2012:[12] - Reporta a indignação popular
com o anúncio da informação da reconstrução da barragem com recurso do
Programa de Aceleração do Governo-PAC 2 e sua mobilização para não
permitir o início da obra. - Focaliza a negligência de
autoridades estaduais que não teriam aplicado os recursos obtidos no reparo
da obra antes do seu colapso. - Reproduz as informações do presidente da
Associação das Vítimas do Rompimento da Barragem Algodões-AVABA, sobre a luta
pela punição dos culpados, a penúria das famílias e sua busca por
indenizações, por meio judicial, e a preparação de uma Ação Civil Pública
para embargar os serviços da barragem que será denominada de Nova Algodões. |
CASO 2 Fundão,
estado de Minas Gerais, região sudeste, novembro
2015 |
Destaques de aspectos do teor de matéria da BBC
Brasil, 6 de novembro de 2015:[13] -
Sismólogos e demais especialistas teriam detectado tremores fora do comum
na região da barragem. -
Porém, afiam que esses tremores são fracos e não teriam capacidade
de destruir estruturas. -
Mas lançam dúvidas sobre a relação desse evento e do rompimento de barragem. - Especialista
teria descartado hipótese de falha de construção, devido a checagens de
seguranças recentes. -
A empresa envolvida afirmou que seus funcionários sentiram os tremores e
fizeram inspeção da barragem e que seria cedo especular sobre hipóteses
relacionadas ao colapso da estrutura. Destaques de aspectos do teor de matéria da BBC
Brasil, 30 de outubro de 2017:[14] -
Inicia mencionando as 19 mortes havidas, a forma dispersa e
improvisada como as famílias desabrigadas foram levadas a imóveis alugados no
meio urbano e os desajustes culturais correspondentes e a demora
do processo de reconstrução das comunidades atingidas. -
Diferentes dimensões dos conflitos
sociais entre os atingidos e os moradores
do meio urbano também é enfatizado, o qual teria sido identificado como decorrente
do desemprego que a
paralização da atividade
da empresa gerou no município de inserção do empreendimento, o de Mariana. - Faz-se referência ao auxílio-emergencial, à
negociação das indenizações, e a “tristeza” do presidente da Fundação
criada para gerir as negociações das indenizações. - Identifica que moradores de comunidades
afetadas estão começando a sofrer preconceito da população urbana que
teve seus empregos ameaçados com a proibição de retorno das atividades da
empresa. - Menciona as tentativas da empresa para obter as
licenças ambientais para depositar os rejeitos. Destaques de aspectos do
teor de matéria da BBC Brasil, de 05 de novembro de 2017:[15] - Inicia mencionando que o evento teria sido os
34 milhões de m3 de rejeito de minério de ferro que não foram
contidos no complexo minerário. - As consequências mais destacadas foram as da passagem
da lama por mais de seiscentos quilômetros de percurso, mas enfatiza
que ainda não haveria análise definitiva sobre os impactos havidos. - Ainda que haja menção a visões científicas
pessimistas sobre a efetividade das providências até então tomadas, prevalece
uma visão científica otimista sobre a capacidade de atuação técnica na
regeneração de espécies da fauna e flora. - Dá-se voz à autoridade nacional ambiental,
a qual afirma que o rio Doce se tornou o rio mais bem monitorado do país,
com garantia de potabilidade da água ali extraída, e que a Fundação
criada para lidar com o problema já teria superado a fase emergencial e
estaria avançando na recuperação ambiental. |
CASO 3 Paragominas,
estado do Pará, região norte, abril
2018 |
Destaques de aspectos do
teor de matéria do Correio de Carajás, de 12 de abril de 2018:[16] - Prefeitura decreta estado de calamidade pública e
divulga a morte de 2 crianças. - O
rompimento teria sido devido a fortes chuvas, que levaram ao
transbordamento do rio Uraim. - As
autoridades locais convocam todos os órgãos para atuação conjunta
em locais de abrigo e pede a voluntários que arrecadem recursos (alimentos e
roupas) junto à comunidade assim como junto a clubes de serviços, igrejas,
empresas. - Defesa Civil Nacional, PM Estadual, Corpo de
Bombeiros e Prefeitura Municipal fazem mapeamento dos bairros
atingidos para definir ações para restabelecer a ordem e dar
assistência aos desabrigados. Destaques de aspectos do teor de matéria da ORM
Notícias, de 12 de abril de 2018:[17]
- O
rompimento teria sido devido a fortes chuvas. - Autoridades ambientais se deslocaram até
outras propriedades para avaliar se as barragens ainda intactas estão sob
risco de rompimento. -
Equipes técnicas de emergência já chegaram ao município. -
Uma conta bancária foi aberta par receber doações em dinheiro. - Há 300 famílias
atingidas.[18] |
Fonte:
elaboração própria.
Conclusão
Acima
foram apontados alguns aspectos de enquadramentos narrativos midiáticos e
institucionais que tendem a obscurecer a multidimensionalidade dos desastres relacionados
a colapso de barragens. Por parte do conjunto de atores responsáveis pela
deflagração desse tipo de crise, quanto mais reduzidos mantenham os
enquadramentos do problema, mais reforçam a ideia de eficácia das medidas de
resposta que acionam. Os grupos afetados — que inadvertidamente experenciam os
seus espaços sendo englobados, de diferentes maneiras, por esse tipo de crise,
numa absorção que lhes cobra danos incomensuráveis — são os que mais se
ressentem de que os enunciados institucionais e midiáticos sobre o problema se
mantenham muito aquém dos termos em que o problema se revela para eles. E a
lógica de poder que atua para produzir uma interpretação simplificada sobre a
crise tanto desdenha do seu sofrimento multifacetado quanto refreia pressões
sociais que pudessem exigir níveis progressivamente mais consistentes de
reflexividade institucional pública e empresarial na direção da redução de
riscos de desastres. O paulatino esvaziamento de sentidos em torno desse tipo
de desastre empobrece a consciência social sobre o problema e enfraquece os
recursos de voz dos grupos sociais afetados, que encontram assim dificuldades
para encontrar aliados para trazer à tona a discussão aspectos sensíveis de
suas mazelas, que foram ocultados pelo alarde a certos ângulos das ações de
emergência. Ficam, então, à mercê de vínculos privados e comunitários para
levar adiante os desafios adicionais que enfrentam na retomada da vida
cotidiana.
Desde a
informação pública disponibilizada por instituições de defesa civil até aquelas
fornecidas por diferentes órgãos de imprensa, tem havido mais replicação de
informações preliminares baseadas na classificação técnica restrita do
acontecimento e nos procedimentos assistenciais adotados do que um esforço de
procura de outros nexos, como os referentes aos jogos de poder que permitem a
produção desses riscos, a sua replicação em diferentes bases territoriais e a
sua reposição insistente na mesma base que tenha sofrido colapso de barragem
num passado recente. Esses três movimentos — o de implantar, o de disseminar
espacialmente e o de recolocar tais objetos técnicos onde esses já ruíram — se
embasam em, ao menos, duas conexões de poder. De um lado, as que integram
diferentes níveis de governo, com as suas correspondentes competências técnicas
e arenas, deliberando favoravelmente à implantação de barragens. De outro, os
atores políticos e técnicos do meio governamental articulados simbioticamente
com universos empresariais — no campo da energia elétrica, minerário, da
irrigação, do lazer e turismo e outros — prescindindo de manter o
distanciamento que seria pré-condição do saber-fazer do ente público. Ao
contrário disso, mantém-se a rede tecnopolítica a que se referiu Ribeiro:
Já que o
desenvolvimento sempre implica transformação e tipicamente ocorre por meio de
encontros entre insiders e outsiders localizados em posições de poder
diferentes, as iniciativas de desenvolvimento estão ancoradas e atravessadas
por situações em que desigualdades de poder abundam. A dificuldade de realizar
mudanças internamente à chamada “comunidade de desenvolvimento” está
intimamente relacionada ao fato de a mesma ser um campo de poder. (Ribeiro,
2008: 110)
No
contexto da crise aguda, os esforços jornalísticos de produção da notícia não
têm sido orientados para colocar essas conexões efetivamente às claras;
tampouco pedem explicações ao ente público sobre como esse deu o seu aval, da
deliberação à fiscalização, para que racionalidades empresariais tão sujeitas a
produzir vultosos riscos e tão débeis em controlá-los pudessem materializar sua
intervenção territorial. Nos casos de colapso de barragem cujo desastre tem
menor visibilidade midiática, a preocupação das autoridades locais em explicar
publicamente as razões do ocorrido é ainda mais tênue.
Uma vez que
esses eventos disruptivos tendem a ser corriqueiros no país, fruto da
invisibilidade dos riscos associados a essa intervenção territorial, há a
possibilidade de os responsáveis se manterem ainda mais coesos para responderem
padronizadamente aos meios de comunicação, listando protocolarmente a tais ou
quais danos e prejuízos e medidas assistencialistas adotadas. Enquanto os
riscos se avolumam, autoridades nacionais se envaidecem ao proclamarem ao país,
como sendo notícias auspiciosas, os planos de longo espectro temporal para a
proliferação de barragens em todo o território nacional fazem parte da visão
estreita que, no caso das hidrelétricas, ressignifica os rios apenas pela ideia
de potencial hidráulico, conforme asseverou Bermann: “A questão dos direitos
das populações aparece, assim, envolta no véu dos ‘impactos’, via de regra
acompanhados de termos como ‘mitigação’, ‘redução’, ‘negociação’ [...] o índio,
que vinha sendo apresentado como ‘bonzinho e amante da natureza’” (Bermann,
2014: 97).
Desconsiderando
qualquer lição a aprender, nos três casos acima abordados a rede tecnopolítica
foi acionada para que novas barragens tomassem o lugar daquelas colapsadas,
incluindo a obtenção de recursos públicos para tal, como no caso da barragem de
Nova Algodões (Brasil, 2018). Os argumentos utilizados por aqueles que decidem
pelas novas obras, substitutas das que colapsaram, são os de que essas
intervenções territoriais são imprescindíveis ao progresso econômico.
Conclui-se que aquilo que se tornou prescindível foi a adoção de uma visão
ampliada, que exprimisse as perdas socioambientais tangíveis e intangíveis
subjacentes a tais decisões.
Se, no Brasil,
as redes tecnopolíticas mantêm-se relutantes à reflexividade institucional e
empresarial diante o colapso de barragens, a adesão midiática imediata aos
jogos de sentidos convenientes às mesmas contribui para a deslegitimação dos
espaços de resistência à lógica de produção dos riscos socioespaciais que
materializam. Mesmo que venha a despertar tardiamente, um interesse midiático
sistemático sobre a evolução de longo prazo das dimensões socioambientais dos
desastres pregressos poderia ser muito valioso para explicitar e desvelar
mecanismos pelos quais os negócios em torno desses objetos técnicos vêm
violando reiteradamente as lógicas e dinâmicas socioambientais dos espaços nos
quais penetram.
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* * *
Versión original
recibida: 16/11/19 Versión final recibida:
18/11/19
Aprobado:
22/11/19
* A primeira versão
deste estudo foi apresentada no V Encuentro Internacional de Ciencias Sociales y Represas “Medio
Ambiente, represas y Cultura”, ocorrido na Universidad de Santiago de Chile em
setembro de 2018. Apoio: Fapesp processo 17/17224-0 e CNPq processo 310976/2017-0.
** Universidade Federal de São Carlos,
Campinas/SP, Brasil, ORCID 0000-0003-1855-3458, norma.valencio@ufscar.br
[1] Todas as traduções desde o inglês e o espanhol
são de autoria pessoal.
[2] Um exemplo dessa abordagem foi o documentário
produzido pela Globonews, intitulado Heróis da Lama, que foi ao ar em
novembro de 2019 (disponível em <https://globosatplay.globo.com/globonews/v/8053582/>,
consultado o 10/11/2019) destacando a vida pessoal, a interpretação subjetiva e
as dificuldades do trabalho de alguns dos bombeiros que atuaram o resgate de
vítimas durante o mais recente caso de colapso de barragem de rejeitos,
ocorrido no município de Brumadinho/MG em 25 de janeiro de 2019.
[3] No caso do desastre relacionado à barragem em Mariana/MG, recente
decisão judicial (processo número 1013613-24.2018.4.01.3800, o qual tramita na
12ª Vara Federal Cível e Agrária da Seção Judiciária do Estado de Minas Gerais),
os representantes da empresa responsável pelo desastre abriram uma divergência
de interpretação sobre suas responsabilidades de indenização às vítimas. O juiz
acatou, o 6 de outubro de 2019, a alegação destes de que os valores financeiros
pagos até aquele momento às famílias reconhecidas como atingidas, e a título de
auxílio financeiro emergencial, pudessem ser descontados das verbas
indenizatórias relativas aos danos permanentes e lucros cessantes.
[4] A esse respeito, convém salientar nossa
situação testemunhal, durante um simulado de emergência de colapso simultâneo
de cinco barragens no município de Itabira, estado de Minas Gerais, ocorrido em
agosto de 2019. Ali vimos centenas dos funcionários da empresa responsável
pelas duas mais emblemáticas tragédias desse tipo atuarem nos pontos de apoio
utilizando coletes laranjas cujas costas estavam os dizeres “Secretaria
Nacional de Defesa Civil”. Para os membros das comunidades das dezenas de
bairros que foram instados, desde as reuniões preparatórias daquela manhã, a
reagir ao soar das sirenes às 13:00 horas, evadindo-se de suas casas e dirigindo-se
ao ponto de apoio, aqueles que ali os recepcionavam e aplicavam questionários —
inquirindo sobre seus dados pessoais, sobre o volume da sirene e outros tópicos
— atuavam como se funcionários públicos federais fossem, devido ao colete que
utilizavam, mas eram funcionários da empresa. Embora os bons propósitos que
eventualmente tiveram os gestores públicos ao darem o seu aval para essa
confusão entre papéis público e privado — justificando-o pela oportunidade de
treinamento para caso de evacuação —, os princípios éticos que norteiam o poder
público recomendam distanciamento e discriminação permanente entre estes e o setor
privado para que ações, como as fiscalização, não sejam postas sob suspeita.
Isso é de todo necessário também para que os direitos de cidadania daqueles que
litigam com as empresas, e que dependem da isenção do poder público na análise
dos fatos, não sejam maculados. Ainda mais nas circunstâncias aqui tratadas, de
simulado de colapso barragem, na qual os cidadãos já se sentem apreensivos e
que esperam encontrar garantias de monitoramento e fiscalização técnica estatal
que garanta em um patamar aceitável o seu bem-estar (territorial, físico,
psicossocial). Se há indicação de alianças que normalizam a nova ordem
espacial, pela dissolução das fronteiras entre o público e o privado, os
direitos de cidadania são seriamente ameaçados.
[5] Em relação a esse aspecto, no caso do desastre em
Brumadinho/MG, os trabalhadores diretos e contratados da empresa foram os
primeiros dentre as quase três centenas de vítimas fatais colhidas na planta da
empresa, o que apontou para o fato de que o conhecimento antecipado dos gestores
sobre riscos envolvidos na obra não foram razão suficiente para que estes
deflagrassem medidas precaucionarias em prol da integridade física da própria
equipe que atuava no terreno.
[6] No caso brasileiro, o referido acionamento se
dá interpelando os níveis superiores do Sistema Nacional de Proteção Civil (sinpdec). A coordenadoria municipal de
defesa civil aciona o órgão estadual correlato e esse, se necessário, aciona o
órgão federal, cada qual intentando atuar diretamente na operações como também
articulando a resposta integrada dos demais órgãos na resposta, que vão desde
os da área de resgate (como Bombeiros e Forças Armadas no resgate) até os da
área de saúde e serviço social, além de proverem meios materiais e financeiros
de apoio. Tal articulação se dá em meio a vaidades técnicas, disputas
corporativas e racionalidades institucionais distintas, incluso com hierarquias
internas (civis e militares) e hierarquias de comando intersetorial que
tensionam entre si, o que pode interferir nas estratégias e no êxito do
trabalho que se pretende como colaborativo, conforme analisou Valencio (2009).
[7] Ilustrativamente, e conforme depoimentos
pessoais da autora desse texto, no caso do desastre relacionado a colapso de
barragem em Brumadinho, foi notória a capacidade dos Bombeiros Militares de
Minas Gerais de obter a atenção da cobertura da grande mídia à sua atuação de
resgate de vítimas fatais, mas nisso restringir a atuação de outros atores — como
a das Forças Armadas, as quais, mesmo em estado de prontidão, não foram demandadas
pela autoridade estadual para atuar subsidiariamente no auge da crise —, e
tornar invisível a cooperação de outros órgãos que ali estiveram dedicados
voluntariamente a tais operações, como a Defesa Civil e Bombeiros Militares do
estado do Rio de Janeiro.
[8] O cobrade
está vigente desde o ano de 2012 e dá as bases para o preenchimento dos
formulários de comunicação do desastre do gestor municipal ao federal. O código
de classificação anterior, o codar (Código de Classificação de
Desastres, Ameaças e Riscos), embora fosse muito mais amplo quanto ao
repertório de tipos eventos ao qual o gestor poderia optar e associar à
manifestação do desastre em sua localidade, ainda assim já apresentava o
problema de estar atrelado a um formulário, o avadan
(Avaliação de Danos), no qual se indicava o preenchimento de apenas um código principal
do evento, impedindo a expressão da complexidade de tessituras de eventos
eventualmente associados (Valencio, 2019).
[9] Emitidas pelo então Ministério da
Integração Nacional (MI), ora denominado Ministério do Desenvolvimento Regional
(MDR).
[10] Slow violence, violência lenta, é um conceito que designa o
processo sorrateiro através do qual os negócios globais têm acelerado o ritmo
da acumulação enquanto invisibilizam as crises ecológicas e os sujeitos
passiveis de serem sacrificados na pobreza e na miséria em que são jogados. A
miríade de feições particulares que tais negócios tomam em suas intervenções
espaciais ocultam o problema da insustentabilidade socioambiental em escala
global e os meios de comunicação, ao pouco se esforçarem para construir
representações sociais coadunadas com a gravidade do problema, colaborariam
para estancar esse processo. Nixon parte desse ponto para destacar o valor das
mobilizações e ativismos socioambientais.
[11] Disponíveis
em: <https://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/sobe-para-5-o-numero-de-mortos-apos-rompimento-de-barragem-no-piaui/n1237629596313.html>
e <https://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/governo-do-piaui-confirma-mais-uma-morte-por-causa-do-rompimento-de-barragem/n1237629627525.html> (acesso o 14/08/2018).
[12] Disponível em: <https://www.ecodebate.com.br/2012/08/15/reconstrucao-da-barragem-algodoes-no-piaui-gera-protesto-das-familias-atingidas/>
(acesso o 14/08/2018).
[13] Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/11/151105_tremor_barragem_lk>
(acesso o 14/08/2018).
[14] Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-41798753>
(acesso o 14/08/2018).
[15] Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-41873660>
(acesso o 14/08/2018).
[16] Disponível em: <https://correiodecarajas.com.br/post/paragominas-barragem-rompe-na-madrugada-e-deixa-mortos-e-desaparecidos>
(acesso o 14/08/2018).
[17] Disponível em: <https://www.correiodecarajas.com.br/paragominas-barragem-rompe-na-madrugada-e-deixa-mortos-e-desaparecidos/>
(acesso o 14/08/2018).
[18] As negritas destacam as causas
mencionadas (chuvas fortes e sismos), o número de vítimas (fatais e desabrigados)
e providências emergenciais.