Revista Estudios Avanzados 32(1), junio 2020: 18-40 · ISSN 0718-5014 · DOI https://doi.org/10.35588/rea.v1i32.4533
O Master Plan como instrumento para
reassentar a população de Bento Rodrigues atingida pelo rompimento
da barragem
de Fundão em Mariana, Minas Gerais: é possível falar de participação popular?
O Master Plan como instrumento para reassentar a população de Bento Rodrigues
atingida pelo rompimento da barragem
de Fundão em Mariana, Minas Gerais: é possível falar de participação popular?
El Master Plan como instrumento para reasentar la población de Bento
Rodrigues
afectada por el rompimiento de
la represa de Fundão en Mariana, Minas Gerais:
¿es posible hablar de
participación popular?
The Master Plan as an
Instrument for the Resettlement of Bento Rodrigues Population Affected by the
Rupture of the Fundão Dam in Mariana, Minas Gerais:
Is it Possible to Talk about
Popular Participation?
Celiane Souza Xavier y Karine Gonçalves Carneiro*
Resumo
As práticas
capitalistas neoliberais têm avançado sobre os territórios, dentre outros
fatores, por flexibilizações e desregulações na legislação ambiental. No
Brasil, a atividade minerária, desde o Brasil colônia, assume papel quase
protagonista no contexto econômico. Segundo Gudynas (2009), o avanço do capital
sobre os territórios torna a Natureza um produto comercializável a partir de
sua objetificação, o que gera uma diversidade de danos e violações ao ambiente
e às populações que nele habitam. Neste artigo analisaremos, a partir do
rompimento da Barragem de Fundão ocorrido em 5 de novembro de 2015 em Mariana,
Minas Gerais (Brasil), as formas de participação popular referentes ao processo
de reassentamento coletivo do subdistrito de Bento Rodrigues — destruído pelo
rejeito de minério oriundo da barragem. O objetivo é o de verificar como, neste
processo, transcorreu o direito à participação das pessoas atingidas. Para
isso, debruçaremos sobre o desenvolvimento do projeto denominado Master Plan de Bento Rodrigues a
partir das atividades de campo realizadas.
Palavras-chave: participação popular, rompimento da
Barragem de Fundão, desastre sociotécnico, reassentamento coletivo, Master Plan.
Resumen
Las prácticas
neoliberales del capitalismo han avanzado sobre los territorios; entre otros
factores, mediante flexibilizaciones en la legislación ambiental. En Brasil, la
actividad minera, desde el Brasil colonial, asume un papel casi líder en el
contexto económico. Para Gudynas (2009) el avance del capital sobre los territorios
hace que la Naturaleza sea un producto comercializable a partir de su
objetivación, lo que genera una diversidad de violaciones al ambiente y a las
poblaciones que en él habitan. En este artículo analizaremos, a partir del
rompimiento de la represa Fundão, ocurrido en el 5 de noviembre de 2015, en
Mariana, Minas Gerais (Brasil), las formas de participación popular en el
proceso de reasentamiento de Bento Rodrigues, pueblo destruido por el desastre.
El objetivo es verificar cómo transcurrió, en este proceso, el derecho a la
participación de las personas afectadas; para ello, analizaremos el desarrollo
del proyecto, denominado Plan Maestro de Bento Rodrigues, en función de las
actividades de campo realizadas.
Palabras
clave: participación
popular, rompimiento de represa Fundão, desastre sociotécnico, reasentamiento
colectivo, Master Plan.
Abstract
Neoliberal capitalist practices have advanced over territories, among other factors, by flexibilization and deregulation in environmental legislation. In Brazil, mining activity, since colonial Brazil, assumes an almost leading role in the economic context. According to Gudynas (2009), the advance of capital over territories makes Nature a marketable product from its objectification, generating a diversity of damages and violations to the environment and the population that inhabit it. In this article, we are going to analyze the breakdown of Fundão Dam, on November 5th, 2015, in Mariana, Minas Gerais (Brazil), the forms of popular participation related to the collective resettlement process of the sub-district of Bento Rodrigues—completely destroyed by the mining tailings. The aim is to verify how, in this process, the right to participation of affected people has occurred. For this, we will look at the development of the project called Master Plan by Bento Rodrigues, based on the field activities carried out.
Keywords: popular participation, Fundão Dam Breakdown, sociotechnical disaster, colective resettlement, Master Plan.
Introdução
Criamos
e modificamos os espaços onde vivemos e, por consequência, alteramos
constantemente as dinâmicas que os concebem (Magalhães, 2015). Muito embora
essas alterações possam decorrer de demandas particulares de cada tempo e
local, é possível observar uma força motriz comum: a produção capitalista do
espaço em escalas locais e global.
Nesses
processos, a ocupação de territórios é, muitas vezes, subordinada ao capital
financeiro, atrelado ao mercado imobiliário e de terras. Esse fator,
principalmente a partir da década de 90, expõe um contexto neoliberal de
produção do espaço, que reaplica os excedentes da moeda urbana em áreas de
interesse do mercado (Nakano, 2010). Nele, o sistema político e financeiro é mantido afastado da garantia
dos direitos da população, especialmente das classes menos favorecidas (Harvey,
1989). Assim, as práticas capitalistas e neoliberais têm avançado
sobremaneira sobre os territórios a partir de flexibilizações e desregulações
nas legislações ambiental e urbana.
Nessa lógica, é possível identificar uma relação entre a atividade de
mineração e a produção do espaço. No Brasil a atividade minerária vem, desde os
tempos coloniais, assumindo um papel protagonista no contexto econômico; o
avanço sobre o território proporcionou, a partir do século XVIII, condições
favoráveis à consolidação da mineração como uma das principais fontes de renda
da Colônia (Fausto, 2013). Desse modo, a extração daquilo que passou a ser
conceituado como “recurso mineral” tem contribuído para a intensa acumulação e
reprodução do capital, o que torna a Natureza um produto comercializável a
partir de sua expropriação e capitalização, inerentes ao sistema-mundo
capitalista (Gudynas, 2015).
Para
dimensionar tal contexto, é válido observar alguns indicadores econômicos
nacionais. Como práticas de transformação do meio ambiente, as economias
extrativas têm relevante influencia na macroeconomia brasileira. Segundo dados
do Instituto Brasileiro de Estatística, em 2019, o setor industrial alcançou um
total de 18% de participação no Produto Interno Bruto (PIB) (IBGE, 2019). Deste
valor, a extração de minério, de petróleo e de gás representaram 3% do PIB
total. Além disso, 14% da produção brasileira é exportada para o exterior
(Cucolo e Ducroquet, 2020), dos quais os produtos minerais têm representado de
30% a 60% da mercadoria exportada nos últimos anos (Brasil, 2013).
Entretanto,
essa expressividade do setor na economia do país traz consigo duas
perspectivas. De um lado, está a influência da mineração nas questões rentarias
brasileiras que, de acordo com o Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM),
incide sobre cinco aspectos principais (Brasil, 2013): a geração de empregos
diretos e indiretos; a contribuição para o PIB e para a Renda Nacional Bruta
(RNB); o pagamento da Compensação Financeira pela Extração de Recursos Minerais
(CEFEM);[1] a
participação do setor nas exportações nacionais, e o Investimento Estrangeiro
Direto (IED). Por outro lado, o setor minerário tem empresas que excedem o PIB
dos países onde atuam, apontando para a concentração da riqueza nas mãos de
poucos conglomerados econômicos (Lopes, 2016); contribui para a precarização do
trabalho quando se observa que num universo de três milhões de trabalhadores da
mineração no Brasil, um milhão e meio são terceirizados e somente quinhentos
mil possuem carteira assinada, além do
número relevante de mortes e acidentes de trabalho e da quantidade de pessoas
submetidas ao trabalho escravo (Zonta e Trocate, 2016); e paga uma CEFEM
percentualmente baixa se comparado a países que tem tributações semelhantes
(IJF, 2017).
Para além da
lógica econômica, o que nos interessa neste artigo é o fato da atividade
extrativo-minerária se consolidar como prática transformadora do espaço
(Wanderley, 2017). Nesse sentido, destacamos as atividades envolvidas em seu
processo produtivo — extração, transporte, beneficiamento, deposição e
administração — que fazem com que uma mineradora demande uma área extensa para
sua implementação (Milanez e Losekann, 2016), gerando a necessidade de
requalificar as características físico-materiais e socioespaciais do local onde
se insere. Nesse processo são recorrentes o deslocamento forçado de comunidades
de seus locais de pertencimento, a ocorrência de desastres sociotécnicos[2] e
ambientais que devastam territórios e comunidades e o acirramento da disputa
pelo direito à terra.
No Brasil, tais consequências tornaram-se evidentes em 2008 quando, com
a valorização mundial do minério de ferro, a intensificação da atividade
extrativo-minerária levou as empresas a avançarem sobre os territórios
(Wanderley, 2017). Em Minas Gerais,[3] no
município de Mariana — que contribui de forma significativa à produção mineral
do estado (Brasil, 2019) —, a Samarco Mineração S.A. (joint venture da Vale Mineração S.A. e da BHP Billiton) ampliou seu
complexo minerário para atender à crescente demanda mundial por produção
mineral através da construção da barragem de Fundão no Complexo de Germano
(Zonta e Trocate, 2016).
Após um período
de intensa atividade, sete anos após sua ativação, essa estrutura colapsou
causando grande destruição na bacia do rio Doce, uma das principais bacias
hidrográficas do país. Desde então, desdobramentos de caráter socioespacial e
econômico emergiram ao longo da bacia. Uma das principais consequências desse desastre foi a expulsão das
pessoas de seus territórios, gerando a necessidade de implementação de
processos de reassentamento em algumas comunidades atingidas de Minas Gerais:
Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo — ambos em Mariana —, e Gesteira, no município de Barra Longa.
Entretanto, quase cinco anos após o desastre, as reconstruções se encontram em
fases preliminares de planejamento ou execução. Os projetos de reassentamento,
a cargo da Fundação Renova,[4] foram
elaborados através de um instrumento urbanístico de planejamento em macro
escala denominado Master Plan.
Bento
Rodrigues, a primeira localidade atingida pela lama de rejeitos, após um longo
período para aprovação e licenciamento, foi o primeiro local a ter seu Master Plan aprovado pela comunidade, em
fevereiro de 2018, e a sua execução iniciada. Todavia, Master Plans são ferramentas de mercado cujo foco é o capital — e
sua produção, reprodução e acumulação — conforme Valença (2016) e Xavier
(2018), possuem grande capacidade transformadora no contexto onde se inserem.
Nesse sentido, tal instrumento acaba por implementar receitas pasteurizadas
(Lefebvre, 2001) de soluções urbanísticas que, por sua natureza, desconhecem as
práticas produtivas socioespacias locais e suas potências construtivas. Por
isso, destacamos como objetivos deste trabalho destacar o antagonismo entre
essa ferramenta e o processo do reassentamento de Bento Rodrigues no que tange
violações de direitos à participação das pessoas atingidas. Nesse sentido,
consideramos que ninguém melhor que essas próprias pessoas para decidir sobre a
forma como deve ocorrer a reparação, por serem elas quem têm conhecimento sobre
as características dos territórios dos quais foram expulsas e que, portanto,
devem direcionar o processo do reassentamento. Tal análise é também relevante
devido a ausência, no Brasil, de marcos regulatórios que apontem diretrizes
para reassentamentos involuntários.
Desse modo, inicialmente,
destacaremos tanto abordagens teórico-conceituais que nos auxiliaram na
percepção da relação dos processos de produção do espaço vis a vis à indústria extrativo-minerária — com ênfase no
reassentamento de Bento Rodrigues — quanto a conjuntura jurídico-normativa
brasileira no que tange o tema de reassentamentos involuntários. Descreveremos,
em seguida, a conjuntura do rompimento da barragem de Fundão face à forma de
atuação desse tipo de indústria no Brasil. Tais temas fundamentam a discussão
posterior, relativa ao processo de construção do Master Plan de Bento Rodrigues. Finalmente, analisaremos, à luz de
parâmetros de Souza (2006), o caráter participativo no processo desse
reassentamento, discussão alicerce para as considerações finais.
Antes de dar
início, entretanto, é importante ressaltar que o método cartográfico — baseado
nas proposições filosóficas de Gilles Deleuze e Félix Guatarri (1996) — norteou
o trabalho de campo realizado com a comunidade e sua assessoria técnica
independente, a Cáritas.[5] Esses
autores “compreendem a cartografia como uma ferramenta de investigação capaz de
transcender reducionismos a partir da investigação das complexidades
relacionadas aos coletivos de força em cada situação específica” (Carneiro et
al., 2019: 290). Por isso, na compreensão da complexidade das forças e dos
atores que, no território, fazem parte do processo do reassentamento coletivo,
a cartografia foi escolhida por ser uma ferramenta de importância para dar
visibilidade a discursos que se contrapõem aos modelos hegemônicos. Além disso,
também influíram na sua escolha:
a revisão
de concepções hegemônicas e dicotômicas que, muitas vezes, invisibilizam os
saberes e suas multiplicidades; a produção de conhecimento a partir de
percepções, afetos e sensações que são fruto do encontro com o campo [...]; a
ruptura da separação entre sujeito e objeto de pesquisa e entre teoria e
prática; [...] e a construção coletiva do conhecimento. (Carneiro et al.,
2019: 290)
Este
método vem conquistando espaço no âmbito das pesquisas qualitativas, sendo
importante ressaltar que tanto incorpora quanto vai além da técnica da
cartografia tradicional — identificada por uma coletânea de mapas. Como método,
busca se conectar ao campo de conhecimento das ciências sociais e humanas ao
propor que o pesquisador deve compreender o exercício cartográfico como um
afetar e um ser afetado, cindindo a cisão entre pesquisador e objeto de
pesquisa, já que busca trabalhar “com” — e não “sobre” ou “para” — as pessoas
que se tornam sujeitos da investigação (Romagnoli, 2009).
Por tais
características, nos encontros com as pessoas atingidas a cartografia
possibilitou a pesquisa como processo e como engajamento através da imersão em
campo. Para dar encaminhamento ao trabalho, no período entre maio de 2017 e
janeiro de 2018, as autoras acompanharam a produção do Master Plan de Bento Rodrigues através da participação: em reuniões
da Comissão dos Atingidos e Atingidas de Mariana; em audiências públicas,
oficinas e reuniões com a equipe de assessoria técnica às pessoas atingidas, e
em reuniões com profissionais (da Prefeitura de Mariana e do Ministério Público
Estadual) e demais agentes envolvidos no processo (membros de movimentos
sociais). Além disso, desenvolvemos as seguintes atividades metodológicas: a
feitura de um caderno de campo para documentar as situações e as narrativas dos
atores envolvidos, e o levantamento, análise e sistematização de documentos —
atas de reuniões e de assembleias públicas, matérias de jornais e materiais de
divulgação das próprias empresas responsáveis pelo desastre — relativos ao
processo de reassentamento.
Mineração e
produção do espaço:
desdobramentos
nos territórios brasileiros
Neil
Brenner (2014) ressalta o desafio do trato das questões urbanas na atualidade:
“a noção do urbano não pode se reduzir a uma categoria de prática; segue sendo
uma ferramenta conceitual crítica em qualquer tentativa de teorizar a atual
destruição criativa do espaço político-econômico sob o capitalismo do começo do
século XXI” (Brenner, 2014: 12). Esse trecho possibilita reflexões quanto à
pluralidade das formas utilizadas pelo capitalismo em sua destruição criativa
do espaço.
A
destruição criativa é um movimento necessário à acumulação do capital que, para
se expandir e gerar lucros [...] deprecia ativamente o existente, o destrói e
cria novas paisagens às custas [...], ou da expulsão dos menos favorecidos de
seu local de origem ou da utilização dessa mesma condição de desfavorecimento
como efeito criativo. (Carneiro, 2016: 62)
Brenner
(2014) pontua, ainda, a importância da consideração das redes transnacionais de
capital, trabalho e infraestruturas de transporte/comunicação no âmbito da
cidade global(izadora) já que, apesar das cidades possuírem uma limitação
territorial, estão conectadas a outras cidades através dessas redes. Portanto,
seja pela consideração da destruição criativa do espaço, seja através da
compreensão urbana no âmbito das redes transnacionais, é relevante compreender
a prática mineradora como importante peça do jogo capitalista na produção
espacial.
No primeiro
aspecto, os apontamentos de Brenner (2014) são compartilhados por Harvey, que
ressalta a destruição do espaço social em nome da reconstrução e do progresso
com vistas à manutenção do sistema político, financeiro e neoliberal
capitalista (Harvey, 2007). Nakano (2010), nesse mesmo contexto, adiciona como
consequência desse processo o veto de direitos, para algumas pessoas, face à
acumulação do capital pelos agentes que o detém.
Já no aspecto
das redes transnacionais de capital, se, por um lado, essas redes possibilitam a
conexão entre lugares antes distantes, por outro, viabilizam a ação de agentes
e capitais externos sobre os territórios locais, criando contextos que
Haesbaert (2004) denominou como não puramente locais, nem genericamente
globais, mas sim, glocais. Nessas
“novas” regiões, para o autor, as localidades dialogam ou sofrem interferências
em seus territórios com/dos circuitos de globalização.
Do amplo
espectro de operações realizadas pelas redes transnacionais de capital,
exploraremos aquelas derivadas da atividade extrativo-minerária no que concerne
à produção do espaço. Elas provocam alterações “tanto nos quadros naturais,
quanto nos aspectos políticos econômicos e sociais” (Silva, 2013: 9) de um dado
local quando da sua instalação. Tais operações transformam o território pela
extração da Natureza — e sua exportação —, sem que haja, necessariamente,
coincidência entre a localização dos agentes capitalistas e os lugares onde
atuam os empreendimentos.
Desterritorializada,
a empresa mineradora global [...] separa o centro da ação e a sede da ação,
produzindo uma espacialidade urbana apenas funcional aos ditames da acumulação,
carregada de contradições sócioespaciais que deixam suas marcas. (Silva e
Santos, 2017: 12)
Atraída
pelas geografias locais, a indústria mineradora global se voltou para os ricos
solos brasileiros, composto por grande variedade de minérios. No caso do estado
de Minas Gerais, onde ocorreu o rompimento da barragem de Fundão, está localizado
o Quadrilátero Ferrífero — região rica em minerais, especialmente, minério de
ferro. Nele estão localizadas as principais áreas de extração mineral do
estado, sob responsabilidade e controle de empresas nacionais e estrangeiras.
Segundo estudos realizados em 2014, Mariana é o terceiro município mineiro em
área destinada à mineração (Diniz et al.,
2014). No município, as principais mineradoras atuantes são a Samarco e a Vale.
Caracterizadas como “um complexo mina-mineroduto-pelotizadora-porto, [...] [que]
tem como principal função abastecer o mercado global com bens naturais
semitransformados extraídos no Brasil” (Zonta e Trocate, 2016: 18).
Considerando a
lógica da produção do espaço, os processos de instalação e operação minerária
configuram uma prática que expulsa comunidades e reconfigura os territórios
onde se inserem, sob o discurso do progresso e do desenvolvimento (Wanderley,
2017). Tão logo se inicia a instalação desses empreendimentos,
um pouco
depois chegam os impactos: poluição, adoecimento da população, alteração de
paisagens, biomas e modos de vida das comunidades atingidas, remoções,
contaminação de cursos d’água, assoreamento, inchaço populacional durante o
período de obras, especulação imobiliária e trabalho escravo, entre outros. (Leal,
2014: 1)
Para
Xavier (2018), a complexidade dessas consequências expõe a incapacidade do
capitalismo de promover um desenvolvimento compatível com a justiça
socioambiental já que, especialmente no contexto de cidades minerárias, gera
espaços segregados à nível socioespacial, além de precariedades sociais e de
trabalho. Assim, como espaço de interesse do mundo globalizado, os territórios
— cada um com sua riqueza específica — vêm sendo inseridos em um “processo de
longa duração induzido pela dinâmica de capitais cuja escala é o mundo” (Silva
e Santos, 2017: 4).
É assim que,
retomando Brenner (2014), percebemos que, tanto no âmbito da destruição
criativa do espaço, quanto no das redes transnacionais, é mister ressaltar o
papel dos governos (nacionais, estaduais e locais) no que diz respeito ao
fomento de políticas para “territorializar [...] investimentos de larga-escala
no ambiente construído e para canalizar fluxos de matéria-prima,
energia, produtos básicos,
trabalho e capital por meio do espaço transnacional” (Brenner, 2014: 71).
Territorializam-se portanto investimentos e
desterritorializam-se as pluralidades de vidas que perfazem os territórios de
existência. No caso da mineração, ao destruir para construir, destrói-se a
Natureza, comunidades e seus modos e projetos de vida e constroem-se nichos de
exploração para um mercado que atenda à lógica produtiva em redes
transnacionais de capital. Com relação ao caso específico do reassentamento de
Bento Rodrigues, é importante, ainda, explorar um último aspecto: a ausência de
um marco normativo brasileiro para casos de reassentamento involuntário,
carência que aprofunda vulnerabilidades nas populações sujeitadas a
deslocamentos forçados.
Nesse sentido, de acordo com Carneiro et al. (2020), “a norma com
maior incidência nos documentos relacionados aos reassentamentos involuntários
no Brasil é o Manual Operacional do Banco Mundial para Reassentamento
Involuntário em projeto de desenvolvimento, de 2001” (Carneiro et al.,
2020). Dos vinte casos estudados pelas autoras, esse Manual é citado em quinze
planos ou projetos, mostrando que as principais diretrizes para esse tipo de
reassentamento são oriundas de uma instituição financeira internacional e não
do Estado. Citam ainda que, em quase sua totalidade, “os instrumentos
normativos utilizados [...] se destina[m] à regulação de matéria diversa, que
não é exclusiva dos processos de reassentamento (como a Lei de Licitações e a
Lei de Registros Públicos)” (Carneiro et al., 2020). Nesse sentido,
devido à ausência de normas de proteção de Direitos Humanos, primordiais para o
planejamento resultantes de deslocamento forçado, concluem: os reassentamentos
involuntários se configuram como uma operação bancária (Carneiro et al.,
2020).
O rompimento
da barragem de Fundão
e o
subdistrito de Bento Rodrigues
O dia 5 de novembro de 2015 é uma data marcada na história do Brasil
(Milanez e Losekann, 2016). Numerosas foram as perdas oriundas do rompimento da
barragem de Fundão, área de deposição de rejeitos que se localizava a
aproximadamente 2,5 km do subdistrito de Bento Rodrigues (Jacobi, 2015). Com o
desastre, os rejeitos de Fundão percorreram cerca de 600 km na bacia do rio
Doce até encontrar o litoral do Espírito Santo (Figura 1), atingindo dois
estados brasileiros e muitos aglomerados urbanos e rurais por onde passou (Zhouri
et al., 2017).
Figura 1. Percurso do rejeito do rompimento em Fundão
Fonte: Zhouri et al., 2017.
O
município de Mariana, inserido em um contexto onde a história é trespassada
pela mineração, tem parte de sua existência socioeconômica alicerçada nas práticas
de extração mineral, realidade que perdura até os dias atuais. Entretanto, esse
histórico não conduziu a uma situação de minimização das vulnerabilidades
sociais, mas provocou o alargamento dos processos de segregação socioespacial.
Apesar de ser o primeiro município brasileiro em repasse da CFEM, os
indicadores sociais da cidade permanecem “baixos, particularmente no que diz respeito à
desigualdade de renda e à pobreza no meio rural” (Mansur et al., 2016: 27).
Das três
estruturas de barragem pertencentes ao Complexo de Germano (Germano, Santarém e
Fundão), Fundão foi a última a entrar em operação (Milanez e Losekann, 2016).
Muito se debate sobre as condições que levaram a estrutura ao colapso.
Observa-se, contudo, que de forma facilitada e agilizada em termos de
licenciamentos ambientais, Fundão foi construída e entrou em operação no ano de
2008 (Zonta e Trocate, 2016). Seu tempo de funcionamento coincidiu com o
momento em que a atividade extrativo-minerária passou a lidar com o recuo dos
preços do minério no mercado internacional — baixa no preço das commodities. Dentre as condições que
podem ter contribuído para o rompimento, destacamos:
pressa para
obter o licenciamento no período de preços elevados, levando ao uso de
tecnologias inapropriadas e à escolha de locais não adequados para a instalação
dos projetos; [...] intensificação da produção ou pressão por redução nos
custos a partir do momento em que os preços voltam aos patamares usuais. (Zonta
e Trocate, 2016: 20)
Dentre
numerosas consequências, o desastre causou a destruição de infraestrutura
pública e privada; degradação ambiental da fauna e da flora; devastação de
territórios indígenas e ribeirinhos; “desalojou mais de 600 famílias em Mariana
e Barra Longa e tirou, com o tsunami de rejeitos, a vida de 20 pessoas (já que
um aborto não foi considerado pela empresa)” (Senna e Carneiro, 2019: 4). Gerou
desdobramentos econômicos, ambientais e socioespaciais dos quais enfatizamos a
destruição do subdistrito de Bento Rodrigues (Figura 2 e Figura 3) e a expulsão
da comunidade pela devastação de seu território.
Fundado no
final do século XVII, Bento Rodrigues foi um dos primeiros distritos auríferos
de Minas Gerais. Distante 35 km do distrito sede de Mariana, o povoado contava
com uma população de aproximadamente 600 habitantes, com comércio pouco
diversificado e com atividades agrícolas em caráter de subsistência (Silva et
al., 2016). Além do cultivo de uma grande diversidade de frutas, legumes e
vegetais, parte dos moradores de Bento criava animais domésticos e não
domésticos e era rotineiro o deslocamento por cavalo. Seus equipamentos
comunitários, assim como suas casas e seus quintais produtivos serviam como a
ancoragem de um sistema baseado em relações de vizinhança. Para seus antigos moradores,
Bento representava suas bases de apoio existencial. Mais que um local de
moradia, as particularidades locais tornaram Bento “uma parte integrante dos
seres, como se fosse constituinte dos corpos e consciências [...] onde as pessoas
compartilhavam vivências significativas intersubjetivas” (Silva et al., 2016: 78).
Em suas
particularidades, o rompimento ceifou os modos e projetos de vida de pessoas.
[...] eu
tinha várias cabeças de gado, muitas galinhas. [...] Os ovos que elas produziam
abasteciam minha família e também eram vendidos em Bento e em Mariana. No
pomar, tinha pés de diferentes tipos de laranja, banana prata e caturra, para
não falar dos vários pés de jabuticaba [...] cuidava da terra e da criação. Mas
o desastre destruiu tudo isso. (Muniz et
al., 2017: 23)
Figura 2. Bento Rodrigues antes do rompimento de Fundão
Fonte: Desidério, 2019.
Figura 3. Bento Rodrigues depois do rompimento de
Fundão
Fonte: Marangoni, 2018.
Quase
cinco anos do desastre, as pessoas atingidas de Bento Rodrigues estão vivendo
em situação emergencial, relocadas em moradias temporárias sob o custeio das
empresas responsáveis pelo desastre. Fora de sua comunidade de origem, seus
relatos mostram que essas famílias se veem num contexto diverso ao seu modo de viver
e às suas memórias, além de sofrerem com a tensão que sobreveio sobre suas
vidas.
[...] a vida já não é mais a
mesma de antes. [...] Temos muitas reuniões, nada é decidido e nem sabemos
quando vai ser. Vivemos em um lugar que não é nosso. Tivemos que vir pra
cidade, viver de aluguel, de cartão. Essa não é a nossa vida. [...] Tudo o que
queremos é justiça, e a empresa nega nossos direitos. Não conseguiram devolver
a nossa vida ainda. (Silva et al., 2018: 7)
Como
vemos, o rompimento atingiu não somente as estruturas físico-materiais dos
territórios, mas também os modos e projetos de vida das pessoas que neles
habitavam fazendo com que a reparação integral, em virtude do rompimento,
esteja vinculada a um reassentamento que se caracterize também pela recomposição
das dimensões de vida e de existência das comunidades. Nesse processo, a
participação das pessoas atingidas em todas as etapas do projeto de
reassentamento é essencial, já que ninguém mais do que as pessoas atingidas
guardam as dimensões do que deve ser reassentado.
O processo
de elaboração do Master Plan de Bento Rodrigues
A responsabilidade pelos programas para a reparação dos danos
ocasionados pelo desastre de Fundão é da Fundação Renova. Entretanto, até sua
institucionalização, o reassentamento de Bento Rodrigues foi conduzido pela
Samarco Mineração S.A., uma das empresas responsáveis pelo desastre. A
posterior mudança da Samarco para a Renova, entretanto, não trouxe alterações
que beneficiassem as pessoas atingidas (Senna e Carneiro, 2019). Tal assertiva
se justifica pelo fato da Renova ter assumido o mesmo modus operandi dessas empresas ao atuar nos territórios. De um
lado, a Fundação tem agido “de modo a fazer com que as reparações ocorram de forma a tornar menos
onerosas as reparações. Por outro, as pessoas atingidas lutam pela participação
em todas as etapas dos processos e pela reparação integral” (Senna e Carneiro,
2019: 10).
Segundo a Cáritas Brasileira (2017)[6], a
discussão sobre a reconstrução de Bento Rodrigues teve início em janeiro de
2016 quando a comunidade, em assembleia junto à Samarco, decidiu pelo reassentamento
comunitário que seria composto por 217 lotes. Tal quantitativo teve como base
estudos diagnósticos denominados “Levantamento de Expectativas”. A exigência da
comunidade atingida sobre os processos de reassentamento foi única: um local
que possibilitasse a manutenção da qualidade de vida e das relações
socioafetivas, econômicas e territoriais que se possuía no “antigo Bento” –
forma como a comunidade se refere a seu local de origem como verificamos ao
longo das atividades de campo.
Em maio de
2016, em assembleias de caráter informativo, três terrenos para o
reassentamento foram apresentados, pela Samarco, para votação da comunidade
(Xavier, 2018). Nesse aspecto, já se adianta a ausência de participação da
comunidade no processo de seleção dos terrenos elencados. Após o processo de votação,
constatou-se a preferência da maioria das pessoas habilitadas — pela própria
empresa — a votar por um terreno com área de 350 ha, localizado no distrito de
Camargos e conhecido como “Lavoura” (Figura 4). No que diz respeito a esse
processo de “escolha”, cabe ressaltar que o “direito” ao voto foi dado, pela
Samarco, ao “chefe de família” dos núcleos familiares, o que restringiu
e violou o direito das mulheres à participação.
Figura 4. Localização do terreno escolhido para o
reassentamento de Bento Rodrigues
Fonte: Rodrigues, 2018. Modificado pelas autoras.
Algumas
características desta propriedade geraram desconfortos na comunidade segundo a
Comissão dos Atingidos e Atingidas de Mariana (2017). Esses incômodos estiveram
relacionados, dentre outros, à proximidade do terreno ao aterro sanitário
municipal (2,0 km) — implicando condições de salubridade e de risco à saúde — e
pela pequena distância entre o terreno e o distrito sede do município de
Mariana (2,5 km) — pelo risco à descaracterização da ambiência rural no Novo
Bento Rodrigues em função do avanço do tecido urbano para o local, provocado
por um possível novo vetor de crescimento urbano (Xavier, 2018).
Ainda assim, as
primeiras propostas de projeto foram realizadas. Em novembro de 2016, foi
apresentada à comunidade a primeira versão do Master Plan do Novo Bento Rodrigues que, segundo a Comissão de
Atingidos e Atingidas (2017), foi desenvolvida sem a participação das pessoas
atingidas e se assemelhava a um condomínio genérico que, em quase tudo, diferia
das espacialidades e territorialidades do Antigo Bento Rodrigues. Por isso,
essa proposta de caráter exógeno à comunidade foi rechaçada pelas pessoas
atingidas.
No ano
seguinte, uma nova proposta de Master
Plan foi apresentada. Sua concepção, também alijada da participação das
pessoas atingidas, partiu da criação de uma poligonal de referência que tinha
como forma o tecido consolidado do antigo subdistrito. A intenção era a de
sobrepor tal poligonal sobre Lavoura para, a partir dela, desenvolver
reformulações. Contudo, essa tentativa também não funcionou, gerando uma
diversidade de conflitos detectados pela própria empresa propositora (Xavier,
2018). O primeiro deles estava relacionado ao tamanho do terreno proposto, já
que a poligonal de referência do antigo Bento ultrapassava os limites da área
de Lavoura. O segundo dizia respeito às características geomorfológicas da área
que, quando da sobreposição da poligonal, evidenciava a ocupação de porções
muito íngremes do novo terreno e, portanto, inadequadas para o assentamento de
edificações e lotes. Outros conflitos estavam relacionados à ocupação de áreas
inapropriadas ou legalmente impedidas: um brejo e uma Área de Proteção
Permanente (APP).
Diante disso,
mais uma proposta de Master Plan foi
produzida tendo como base a redefinição de áreas/zonas e alterações na
demarcação das principais vias. Concomitantemente, a Fundação Renova — neste
momento responsável pelos processos de reparação — deu entrada nos
licenciamentos ambientais relativos ao Master
Plan a partir de sua designação como uma nova área urbana de Mariana —
muito embora a comunidade de Bento Rodrigues fosse portadora de características
rurais — na Secretaria Estadual de Cidades e Integração Regional (SECIR) e
Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SEMAD).
Essas entidades, entretanto, constataram a inviabilidade ambiental do projeto
apresentado, principalmente, pela necessidade de considerável alteração da
topografia.
Seguiram-se
conflitos de distintas naturezas que levaram a sucessivas propostas para o
reassentamento — até meados de 2017
foram confeccionadas, aproximadamente, 19 versões (Xavier, 2018). O questionamento
comum a todas, para além dos problemas já apresentados, foi a falta de
participação da comunidade atingida na construção desses planos, conforme informou
a Comissão dos Atingidos de Mariana durante o processo de pesquisa. Os Master Plans eram apresentados à
comunidade, utilizando-se de linguagem gráfica e oral técnica e pouco acessível
e compreensível. Assim, como em um ciclo fechado, os projetos eram
desenvolvidos, apresentados, rejeitados e refeitos.
Diante desses
processos que não contavam com uma metodologia participativa de projeto, por
determinação da SECIR e da SEMAD, a Renova se viu obrigada a organizar oficinas
com vistas à mais uma reformulação do Master
Plan do Novo Bento para que se contemplasse a participação da comunidade.
Durante as atividades que aconteceram entre os dias 14 e 28 de novembro de
2017, a comunidade foi dividida em grupos cujo número de famílias participantes
variou entre 4 e 15 (Xavier, 2018).
Essas oficinas
consistiram na análise, pelas famílias atingidas, de duas propostas de projeto
que, até aquele momento, haviam alcançado maior aceitação da comunidade. Sua
finalidade não era escolher entre uma ou outra proposta, mas aferir
potencialidades e fragilidades para que uma futura versão, embasada nesses
resultados, pudesse ser desenhada em maior alinhamento com os anseios da
comunidade. As duas propostas foram representadas em maquetes na escala 1/750
(Figura 5) apresentando: a demarcação de cada propriedade — identificadas por
números; das vias locais (novas e pré-existentes); dos rios; das áreas de
proteção ambiental e dos principais equipamentos comunitários.
Figura 5. Maquete exposta na oficina
Fonte: acervo próprio.
As
oficinas foram conduzidas pela Cáritas e pela Fundação Renova. A possibilidade
de acompanhamento e atuação nestas atividades,[7]
junto à equipe da Cáritas, foi muito importante para a análise aqui
desenvolvida. De modo geral, as atividades das oficinas seguiram o seguinte
formato: explicação das propostas de Master
Plan às famílias pelos técnicos da Fundação Renova; convite para que as
pessoas atingidas expusessem suas dúvidas e opiniões em relação aos projetos, e
recolhimento das impressões dos núcleos familiares sobre cada proposta para
composição de um mural (Figura 6).
Figura 6. Mural produzido no dia 25/11/2017
Fonte: acervo próprio.
Após a realização das oficinas e de um período de mais discussões e
reelaborações, o Master Plan de Bento
Rodrigues (Figura 7) foi aprovado em fevereiro de 2018 para contemplar um total
de 255 núcleos familiares (Ramboll, 2019). Em abril deste mesmo ano,
iniciaram-se as obras.
Mesmo tendo sido aprovado e as obras iniciadas, o Master Plan de Bento Rodrigues confirmou a inadequação da
ferramenta urbanística para casos de reassentamento involuntário. Para além do
tempo gasto em reformulações, o cenário de exogenia resultante do plano não
esteve estrito apenas às questões da forma e da espacialidade. Em junho de 2019, a Ramboll — expertos contratados pelo
Ministério Público para avaliar a atuação da Renova nos processos de reparação
integral aos danos socioeconômicos — publicou o Dossiê Reassentamento.
No documento, apontou uma série de problemas para o reassentamento de Bento:
existência de Áreas de Preservação Permanente (APPs) que não foram reconhecidas
nem no Master Plan nem no
licenciamento ambiental; a demarcação de 42 lotes privados sobre APPs,
contrariando as legislações urbanísticas vigentes; excessiva movimentação de
terra na terraplanagem dos lotes para implantação das edificações (Figura 8) e
a insatisfação das famílias, pois grande parte dos lotes oferecidos não
permitirão a reprodução dos modos de vida anteriores ao desastre — por isso,
parte dessas famílias tem desistido de fazer parte do reassentamento (Ramboll,
2019).
Figura 7. Versão Final do Master Plan de Bento Rodrigues
Fonte: Fundação Renova, 2018. Modificado pelas autoras.
Figura 8. Declividade do terreno na testada dos lotes
do reassentamento
Fonte: Ramboll, 2019.
É possível
falar em participação popular?
Como
demanda oriunda de um desastre sem precedentes no território brasileiro
(Wanderley, 2017), a reconstrução de Bento Rodrigues exemplifica como uma ação
privada — consequência de um desastre também privado — pode incidir nas
condições materiais e socioculturais dos territórios. Nesse sentido, a busca
por colocar em prática aquilo que é direito das pessoas atingidas em termos da
participação popular nos processos de reparação integral, não tem sido
observada. Tal fato pode ser comprovado pela Recomendação Conjunta nº 10, de 26
de março de 2018, às empresas Samarco Mineração S.A., Vale S.A. e BHP Billiton
Ltda., na qual o Ministério Publico Federal (MPF), o Ministério Público do
Estado de Minas Gerais (MPMG), o Ministério Público do Estado do Espírito Santo
(MPES), o Ministério Público do Trabalho (MPT), a Defensoria Pública da União
(DPU), a Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais (DPMG) e a Defensoria
Pública do Estado do Espírito Santo (DPES) evidenciaram a forma como a Renova
tem agido ao conduzir tais reparações. De acordo com a Recomendação, são constantes
as “denúncias de violações de Direitos Humanos de indivíduos ou comunidades
atingidas, preponderantemente relacionadas à dificuldade de acesso à informação e à atuação unilateral e discricionária
da Fundação Renova [...] referente aos programas de reparação” (Brasil, 2018: 5).
Dentre tais denúncias constam aquelas vinculadas ao reassentamento coletivo de
Bento Rodrigues.
No que concerne
ao Master Plan de Bento Rodrigues,
apesar da comunidade ter atuado em alguns momentos de sua elaboração, há de se
questionar a efetividade dessa participação. Primeiro, porque a natureza dessa
ferramenta, de caráter empreendedorista vinculada ao planejamento urbano
mercadófilo, contrasta com o reassentamento de uma população com
características essencialmente rurais. Depois, porque o processo do
reassentamento coletivo, como visto, alijou a comunidade de sua elaboração.
Essa ausência da comunidade tem
relação com “o tom vago e difuso em que a proposta de participação popular aparece
em textos oficiais, ao lado de sua frágil normatização, que tende a torná-la,
como conseqüência, algo centralizado nas mãos dos técnicos e na burocracia
governamental” (Valla, 1998: 9). Ainda, a falta de participação vai de encontro
ao acesso democrático às cidades e ao meio social expresso no Estatuto da
Cidade (Brasil, 2001). Desse modo, a participação das comunidades atingidas na
construção dos projetos pode ocorrer de modo enviesado por aproximar-se de
consultas públicas, por realizar-se pela introdução de agentes mediadores ou
por se resumir ao voto para escolha dentre opções previamente estabelecidas.
Portanto, para a
investigação da participação na elaboração do projeto de reassentamento de
Bento Rodrigues e em consonância com os princípios de gestão democrática do
espaço (Vieira et al., 2013) e
do direito à cidade (Lefebvre, 2001), utilizaremos como parâmetro de análise as
proposições de Souza (2006). A escolha por essa metodologia fundamenta-se,
primeiramente, no fato de que o autor é referência para as discussões sobre a
participação popular no âmbito do planejamento e da gestão urbanas no Brasil.
Em segundo lugar, sua forma de abordagem estabelece critérios objetivos para
análise da participação a partir da “escada de participação popular” de Sherry
Arnstein, que balisa análises e avaliações referentes à participação em
processos de planejamento urbano e apresenta uma matriz que denomina como
“Escala de Participação” (Figura 9). Essa matriz leva em consideração a
diferença entre ações de não participação ou falsa participação — como aquelas
descritas por Valla (1998) —, e aquelas de participação efetiva, onde a
população é colocada como protagonista na concepção do projeto.
Figura 9. Da não participação à participação autêntica:
uma escala de avaliação
Fonte: Souza, 2006.
Segundo
Souza (2006), as categorias coerção e manipulação são consideradas situações de
não-participação, pois se observa a imposição e/ou manipulação dos indivíduos.
As categorias informação, consulta e cooptação implicam situações de
pseudo-participacão que “não passam de expressões de dissimulação ou falsa
participação” (Souza, 2006: 202). Já os três últimos casos — parceria, delegação
de poder e autogestão — são considerados participação autêntica, já que as
pessoas podem conquistar autonomia nos processos de gestão. Ainda de acordo com
o autor, da coerção à autogestão, situações de heteronomia vão sendo
substituídas por de autonomia, em face da expectativa de um planejamento mais
ou menos democrático.
Para Xavier
(2018), os primeiros posicionamentos soaram mais como uma satisfação à opinião
pública — nacional e internacional já que a BHP Billiton é uma mineradora
australiana com ações na bolsa de valores de Londres — do que como forma de
atender às exigências da comunidade quanto ao reassentamento ou de reparar o
dano ao direito à moradia digna da população atingida (Cáritas Brasileira,
2017). O próprio “Levantamento de
Expectativas”, proposto e realizado pela Samarco, foi subaproveitado no
processo de confecção do Master Plan,
uma vez que o único dado foi utilizado no processo foi o quantitativo e
capitalizável: autodelimitação dos terrenos atingidos. Nesta fase, podemos ver
se delinear o caráter de uma não-participação sob os auspícios da “manipulação”
narrada por Souza (2006).
Da mesma
maneira, as primeiras propostas projetuais foram marcadas pelo caráter
meramente informativo/consultivo, ou seja, por formas de pseudo-participação. A
população não participou das fases de concepção dos projetos e, ainda, não
atuou como definidora dos conceitos que deveriam norteá-lo. Obviamente, nenhuma
dessas propostas foi aprovada pela comunidade pois não incorporavam, ou
incorporavam minimamente, as características que compunham as bases para o
reconhecimento e pertencimento das pessoas atingidas ao território. Neste sentido,
Souza alerta: “Na prática [...] argumentos técnicos são, muitas vezes,
invocados [...] para justificar a não incorporação das sugestões da população”
(Souza, 2006: 204). No caso em análise, essa afirmativa se confirmou, por
exemplo, no processo de escolha dos terrenos passíveis para o reassentamento. A
própria empresa foi quem indicou as possibilidades enquanto a comunidade
atingida encarregou-se, apenas, de escolher uma dentre as opções apresentadas.
Neste episódio, a população foi levada a crer participar do processo enquanto,
na verdade, o que ocorreu foi uma pseudo-participação sob a forma de consulta.
Além disso, em
todo o processo foi identificada falta de clareza nas informações divulgadas, o
que inflige a garantia do direito de acesso à informação pois, mais que
informar, é preciso informar bem, com linguagem acessível ao público ao qual a
informação se destina. Mesmo as oficinas “participativas” não constituíram uma
situação de participação satisfatória conforme os parâmetros de Souza (2006).
Nesse caso, com base no acompanhamento das atividades pelas autoras, não houve
garantia de que as críticas e sugestões indicadas pelas famílias nas oficinas
seriam incorporadas à proposta de reformulação do projeto.
Por tudo isso,
o Master Plan se revelou, desde o
início, como uma ferramenta inadequada para a construção do projeto de
reassentamento de Bento Rodrigues já que, como instrumento criado para
materializar os modelos estratégicos do mercado (Valença, 2016), em geral,
pouco ou nada participativo, reforçou o viés de atendimento de interesses
particulares — o das empresas causadoras dos danos —, distintos daqueles da
comunidade atingida. Apesar disso, devemos mencionar que os sucessivos
processos de adaptação da ferramenta de projeto àquilo que era demandado pela
comunidade resultou numa versão final um pouco mais próxima dos anseios das
pessoas atingidas. Ainda, o tempo de imersão da comunidade nessa realidade de
negociação e disputa tem tornado os atingidos cada vez mais emancipados e
conscientes em relação à manutenção de seus direitos diante das pressões do
capital minerador. Desse modo, gradativamente, a comunidade vem buscando formas
de assumir o seu lugar de protagonista no processo de reparação integral.
Considerações
finais
As complexidades
e contradições relacionadas aos desdobramentos oriundos do rompimento da
barragem de Fundão, em Mariana, Minas Gerais (Brasil), revelaram: jogos de poderes/saberes relacionados à
produção do espaço em territórios onde empresas extrativo-minerais desenvolvem
suas atividades (Xavier, 2018); disputas entre os envolvidos — empresas, estados e pessoas
atingidas — num contexto de assimetria frente aos processos de reparação
integral; ausência de marcos legais no que concerne processos especificamente
voltado para o reassentamento coletivo (Carneiro et al., 2020) — o que implica
consequências negativas para as formas de participação das pessoas atingidas.
Tendo como
referências principais a escala de participação de Souza (2006), os princípios
de gestão democrática do espaço (Vieira et
al., 2013) e do direito à cidade (Lefebvre, 2001), conclusivamente,
não foi dada aos atingidos e atingidas de Bento Rodrigues a efetiva
possibilidade de participação no processo de planejamento e concepção do
projeto de reassentamento. Destacamos uma diversidade de problemas, dentre
eles: propostas de projeto incompatíveis com a realidade à qual se destinou; um
processo pouco adaptável às demandas da comunidade, incorporando-as apenas com
aa exigência de organizações governamentais e d resistência das pessoas
atingidas e sua assessoria técnica; o uso de informações superficiais com
linguagem e conteúdo pouco acessíveis produzidos pelas empresas envolvidas no
desastre; elaboração do projeto com características marcantes de não participação
e/ou pseudo-participação das comunidades atingidas, e um custoso processo de
adaptação da ferramenta de planejamento mercadófilo às realidades distintas
daquelas alicerçadas nos modos de produção capitalista do espaço vistos,
principalmente em Harvey (2007), Brenner (2014) e Nakano (2010).
Tal análise nos
aproxima do consenso em relação à afirmação de que, somente com participação
popular, é possível alcançar a reparação integral. E é também este o caminho
para afastar a produção do espaço (Oliveira et al., 2018) da lógica
capitalista e neoliberal.
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______. (2017). “The Rio Doce Mining Disaster in Brazil: Between Policies of Reparation and the Politics of Affectations”. Vibrant 14(2). DOI https://doi.org/10.1590/1809-43412017v14n2p081
Zonta, M.
y Trocate, C. (orgs.). (2016). Antes fosse mais leve a carga: reflexões
sobre o desastre da Samarco/Vale/BHPBilliton. Marabá, iGuana.
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Recibido: 13/10/2018
Aceptado: 26/02/2020
Versión final recibida: 05/06/2020
* Celiane Souza
Xavier: Universidade Federal de Minas Gerais, Ouro Preto, Brasil, ORCID 0000-0002-8793-7108, arqceliane@gmail.com;
Karine Gonçalves Carneiro: Universidade Federal de Ouro Preto, Belo Horizonte,
Brasil, ORCID 0000-0002-0786-8465,
carneirokari@gmail.com
[1] Contraprestação devida aos municípios,
estados e união pela utilização econômica dos recursos minerais.
[2] Mesmo quando abreviado, utilizamos este
termo para “enfatizar um processo deflagrado para
além de uma avaria ou erro meramente técnico, remetendo-nos, assim, às falhas
da governança ambiental, produtoras de novos padrões de vulnerabilidade que
expuseram, de fato, a população ao risco” (Zhouri, et al., 2018: 4).
[3] O Estado é responsável por aproximadamente 53% da produção brasileira de minerais metálicos e 29% de minérios em geral.
[4] Fundação constituída em 2016 a partir de um Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC) celebrado entre as empresas Samarco, Vale e BHB Billiton e os governos da União e dos Estados de Minas Gerais e Espírito Santo, responsável pelos programas de reparação dos danos causados pelo desastre de Fundão.
[5] A primeira experiência de assessoria técnica independente (das empresas) das pessoas atingidas pelo rompimento em Fundão foi a do município de Mariana.
[6] Os dados sobre Cáritas Brasileira (2017) e a Comissão dos Atingidos e Atingidas de Mariana (2017) correspondem a informações verbais levantadas por intermédio da inserção em campo proposta pela estratégia metodológica.
[7] Este acompanhamento
foi feito por uma das autoras como parte das atividades do Trabalho Final de
Graduação (TFG) do curso de Arquitetura e Urbanismo, na Universidade Federal de
Ouro Preto (UFOP).