Entre os seios e os ventres: palavras

Revista Estudios Avanzados 35, diciembre 2021: 105-106. ISSN 0718-5014

 

Reseña

 

Entre os seios e os ventres: palavras

 

Tão gentil de distante, tão macia aos olhos

vacuda gordinha

de segredos bem escondidos

(Ana Paula Tavares)

 

Diana Junkes Bueno Martha[1]

 

Ananaz, Kanguimbu (2020). Seios e ventres. Luanda, Tchingapy Editora.

 

O ano de 2020 foi um marco para todo o planeta. Assolados pela pandemia, pelo crescimento da miséria e da fome, atravessamos, ainda, o maior luto da história até hoje. Não são apenas corpos, mas sonhos, perspectivas de futuro e a solidariedade que de algum modo foram-se esvaindo pelos leitos de UTI, pelos leitos dos rios, pelas lágrimas, leitos lentos rios que correm por tantas faces. Nunca foi tão urgente que a arte se colocasse como que lavra a resistência, a resiliência e a reconstrução. É aguda a necessidade de repensar a experiência; pungente a necessidade de nomeá-la e vivê-la pela palavra, que se não conserta o mundo, concerta as utopias, o amor, o desejo, o corpo e a história.

Justamente neste contexto, a poeta angolana Kanguimbu Ananaz (1959) traz à luz o seu Seios e ventres. Publicado em 2020 pela Editora Tchingapy, o livro é delicadeza, erotismo e luta simultaneamente e não poderia ser distinto, pois que a escrita-mulher não é outra senão aquela que se deita sobre o papel como a mulher inscrita no tempo, no espaço e em si mesma; deita-se no mundo a recolher muco, sonhos e dores, coragem e grafos.

Ao longo dos 51 poemas que compõem a obra, a voz poética ora vela, ora desvela, ora mergulha no prazer, ora chora de dordor da mulher que apanha, que sofre, dor história, dor coletiva, afinal onde uma voz, não nenhuma voz e em Seios e ventres é a dor de um continente inteiro que brada, dor de mãe: África, “as emoções caem / aos pedaços na alma” (de “Salivas nubladas”. Mas disse acima que era também prazer e é. Sem temer o erótico, o corpo como repositório de tessituras e orgasmos, a voz poética que atravessa cada um dos versos anuncia a liberdade profunda da mulher desejante e de sua recusa quando isso lhe convém, da mulher que “serve” para alimentar as bocas do mundo, como se em “Seios empanturrados”:

 

alimentai-vos de mim

sou vida

dou vida

alimentai-vos

boca do mundo.

 

Não raro, o prazer e sua procura associam-se aos elementos da natureza, em um jogo de sinergias que transporta o leitor para atmosferas extremamente telúricas, e talvez por isso mesmo oníricas. De modo algum esse jogo de forças é desequilibrado, antes, mesmo que pareça paradoxal, é holístico, arcaico, primevo como o primeiro grito de prazer da primeira mulher que gozou nos braços de seu amor e daquela que vende, em silêncio, seu corpo, anulando o amor. E é assim, por exemplo, como é mágoa em “Anseia verdades”: “jasmim / arranca lençóis / meu ombro chora”, ou como lemos em “Desejo singular”:

 

cansada aluguei

meu ventre

minha alma

em cada esquina

[...] quero exalar casuarinas

adormecidas no beco

romântico da minha foz

 

É também nas imagens que a poesia de Ananaz se afirma como potente. As imagens são capazes de articular num mesmo poema o grotesco e o sublime, o áspero e o lírico, a amargura latente: “o rosto exuberante / esmaga teu coração / sentado na rocha” (de “Sabor do Nudismo”). Porém, acima de tudo, ainda que sua presença se dilua ao longo do livro, a metalinguagem, a sinestesia e a configuração do corpo do poema, no corpo das palavras, nos corpos que se amam, emprestam a Seios e ventres o poder da alavanca, que levanta o mundo a partir de um ponto de apoio: a poesia, afinal “todas metáforas são delírios fantásticos”.

O que entretanto é fabuloso — no sentido da fábula — nesse mareado de amor, versos, sutilezas e visceralidade é que a linguagem articula pelo menos duas línguas (sem considerar a do corpo, a da natureza, aquela que é incompreensão e eco). Essas línguas são o português e o umbundo. Postas em tensão nos poemas, seja pelo surgimento do umbundo, seja pela sintaxe justaposta de uma não falante de português e que, no entanto, é sim falante de português, a bricolagem é também colcha dos mais bonitos retalhos, da história de uma língua que não é materna e que entretanto sendo a língua da opressão é a que constrói, não sem dor, a liberdade pós-independência. Como não amar, então, em português, levando ao idioma a força das raízes mais profundas da língua que foi nunca silenciada. Uma e outra valem-se de suas peles para o amor, para denunciar para alimentar. É isso, como ensina a poeta: “pois é, a poesia alimenta”. Sirvamo-nos do congraçamento da mesa-rima-ritmo-tato-olhar; mesa posta, a postos para a escuta, para os cheiros, para as memórias, da flor, da foz, do vão profundo que em cada mulher anoitece, entre estrelas, o mundo.

 

 

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Versión original recibida: 16/06/2021              

Versión final recibida: 17/06/2021

  Aprobado: 19/11/2021

 


 

[1] Diana Junkes Bueno Martha, Universidade Federal de São Carlos, Brasil, ORCID 0000-0002-5465-8030, dijunkes@gmail.com