Entrevista com André Timm: corpos, migração e
linguagem em seu romance Morte Sul Peste Oeste
Revista
Estudios Avanzados 37,
diciembre 2022: 121-123. DOI
ISSN 0718-5014
Entrevista com André Timm: corpos, migração e linguagem
em seu romance Morte Sul Peste Oeste
Entrevista a André Timm: cuerpos, migración y lenguaje en
su novela Morte Sul Peste Oeste
Interview
with André Timm: Bodies, Migration, and Language, in His Novel Morte Sul
Peste Oeste
por
Inés del Pilar Hortal Sandoval[1]
André Timm é natural de Porto Alegre
e radicado em Santa Catarina. Timm é autor de Insonia (2011), Modos
Inacabados de Morrer (2017), romance finalista do Prêmio São Paulo de
Literatura, e Morte Sul Peste Oeste (2020), livro vencedor do Prêmio Minuano de
Literatura 2021.
Morte Sul Peste Oeste é uma história
comovedora. É a história de Dominique, um haitiano que deixa seu país com
destino Brasil. Paralela à saga de Dominique, conhecemos o relato de Brigite, a
menina de treze anos, a menina transexual, exilada do seu corpo como Dominique
é exilado de seu país. Ambos os personagens são ao mesmo tempo migrantes de
territórios: um lugar, uma língua, um corpo em um constante deslocamento. Ambos
os personagens vivem na periferia, submetidos a círculos de violência e
degradação.
A entrevista a seguir
com André Timm revela aspectos interessantes desenvolvidos no romance que
prendem a atenção do leitor, que, após a leitura do romance, acaba com a
sensação de continuação da história de Dominique e Brigite. O uso da linguagem
utilizada pelo autor é particularmente marcante e é tema também nesta
entrevista. Foram consideradas as siglas IH para a entrevistadora e AT para o
entrevistado: André Timm.
IH. O primeiro
aspecto que me chamou atenção tem a ver com o título do romance, há um jogo
intencional de palavras? O título pode ser lido em diferentes direções, tais
como: Morte/Peste, Sul/Oeste, Norte/Oeste ou
Peste/Sul. Existe alguma intenção ou significado especial por trás deste
título tão marcante e lúcido ao mesmo tempo?
AT.
Antes de tudo, claro, o título faz menção aos pontos cardeais pois essa
temática diz respeito à condição de migração que o livro traz através de
Dominique, um haitiano que se vê forçado a abandonar seu país, se lançando rumo
ao Brasil, em busca de trabalho. Há também um jogo fonético dos termos, pois no
Brasil, a ordem específica quando se refere às direções cardeais é sempre
Norte-Sul-Leste-Oeste. A troca e inserção dos termos Morte e Peste, portanto,
remete às próprias adversidades enfrentadas no Brasil, do preconceito à
hostilização e violência, não só por imigrantes, mas por todos os grupos
menorizados.
IH.
Qual é o objetivo do narrador e/ou autor na página 9 ao incluir o seguinte: “Diálogos
sinápticos. Significado e significante sob a forma de impulsos elétricos”?. Na
sua opinião, um leitor comum, não especialista em linguística, entenderá os
sentidos das frases?
AT. Não sei se
entenderá. Todavia, acredito que eu não posso me pautar por essas premissas
quando escrevo. Como leitor, não gosto da literatura que me entrega tudo
pronto. Como escritor, portanto, parto do mesmo princípio.
IH. Seguindo com o
tema da linguagem, na página 105 se lê: “Então, cada um dos milhões de pixels
que compõem isso que se chama imagem realizam suas operações binárias”. Isto
funciona como um tipo de ensino-aprendizagem?
AT. É um ponto
interessante este que você levanta. De fato, neste livro, e em outros que eu
escrevi, parece haver um tipo de “didatismo” que permeia as histórias. Contudo,
e por isso coloco entre aspas o termo, não há uma pretensão de ensinar, a
priori. Eu diria que é muito mais uma razão estética do que funcional. Uma
estética que se vale de uma espécie de conhecimento enciclopédico que ajuda a
criar uma atmosfera específica para a narrativa.
IH. Continuando com
a pergunta anterior, na página 153, você se refere aos “diálogos sinápticos.
Significado é significante na forma de impulsos elétricos” e “trilhões de
conexões celulares em constante troca de informações”, também mencionado na
página 9. Qual é o propósito de repetir estes conceitos, mencionados acima, o
que ou quem é seu público-alvo?
AT. O propósito
também é estético, associado à intenção de marcar para o leitor o retorno,
aquele loop narrativo, em que o personagem encontra-se outra vez diante
de um momento tão crítico quanto foi aquele momento que abre o livro. Lá, no
início, ele se perguntava: sobrevirei? Aqui, ele se pergunta: como salvar minha
família?
IH. Em entrevistas
anteriores que lhe foram feitas, se trataram temas sobre marginalidade e/ou
minorias, nesse mesmo sentido gostaria de perguntar sobre o deslocamento
migratório do Haiti para o Brasil. Por que a escolha do Brasil? Neste caso especificamente
Chapecó, Santa Catarina.
AT. O Oeste de Santa Catarina reúne muitas empresas frigoríficas, um
setor que implica trabalho pesado, especialmente nas linhas de corte. O fluxo
migratório, composto por pessoas precisando de trabalho, criou uma oportunidade
que o setor começou a explorar. Hoje, além dos haitianos, outras etnias também
vêm à região buscando trabalho.
IH. Você acha que,
nos fluxos migratórios, os seres humanos, além da busca um território
diferente, também procuram alguém semelhante em termos de raça, por exemplo,
identificações com outra pessoa da mesma cor de pele?
AT. Creio que há,
antes de tudo, a necessidade de acolhimento. Longe de sua pátria, da família,
dos amigos, em uma terra distante, muitas vezes limitados ou isolados pelas
próprias fronteiras do idioma, o senso de comunidade e solidariedade entre
semelhantes se fortalece, quase como um movimento natural. E, nesses casos, a
etnia é um porto seguro no qual se busca apoio, entre irmão de pátria, entre
falantes da mesma língua.
IH. No romance, há
duas histórias paralelas sendo narradas: Dominique e Brigite. Por que a inclusão
de uma menina trans e qual é a finalidade deste personagem? Ambos os
personagens, cada um com a sua especificidade.
AT. Brigite também
se sente uma imigrante, só que em seu próprio corpo, um corpo que ela tem
dificuldade em reconhecer e aceitar. Cada qual a sua maneira, Brigite e
Dominique enfrentam problemas que tem uma raiz comum na intolerância. Há também
a questão da paternidade que perpassa toda a narrativa. O pai de Brigite
abandonou a família, em parte, por não aceitar a condição da filha. Dominique
perdeu uma filha no terremoto, não conseguiu salvá-la. Em Brigite, Dominique vê
um pouco da própria filha perdida, e através dela, e do ato de ajudá-la,
consegue ressignificar o sentimento de perda.
IH. Uma das partes
que mais me chamou a atenção no romance está na página 143: “Visto de cima, o
campo era um imenso oceano verde. Os imigrantes à deriva com seus coletes. Mas
nesta versão da travessia, eles conseguem alcançar a costa. E, na costa, chegam
em sua casa, que, por mais inóspita que possa parecer, aos menos nesta noite,
vai ser a casa de homens de alma lavada e que conhecem o prazer da desforra”.
Este deslocamento poderia, de alguma forma, ser comparado com a travessia de um
oceano?
AT. Sim, a ideia é
estabelecer um paralelo entre o jogo de futebol, e o campo, visto de cima, com
um tipo de travessia comum a muitos imigrantes que é a travessia marítima.
IH. Como você
consegue interpretar/interpelar, representar/desenvolver um caráter
afrodescendente e outro transgênero, já que você é branco e cisgênero? A
validade de um discurso que não é testemunho direto de um afrodescendente ou de
uma pessoa trans pode ser o mesmo de um que é? Considerando que sua posição
como escritor seria a de “outro”.
AT. Colocar-se no
lugar do outro é a condição que define a literatura, tanto para quem lê, quanto
para quem escreve. Chamamos a isso alteridade. Portanto, sim, considero válido
o discurso que é criado por alguém que não corresponda à realidade de vida dos
personagens que cria. Para isso, nos valemos de muitas técnicas e de um imenso
exercício de sensibilidade. Pesquisas, entrevistas, leitura sensível. Li, por
exemplo, uma extensa bibliografia sobre imigração e transgeneridade.
Entrevistei haitianos. Assisti a filmes, documentários. O livro foi submetido à
leitura de uma mulher trans, a fim de assegurar que era uma construção de
personagem que não incorresse em estereótipos. Mas ao fim de tudo, a literatura
é o terreno da liberdade. O escritor precisa ter salvo conduto para escrever a
partir de onde sua história demandar. No Brasil, às vezes, tomam lugar de fala
por proibição. Não penso que deva ser assim. Lugar de fala, é antes de tudo, o
entendimento que a perspectiva a partir de onde fala, muitas vezes, está
contaminada. Por isso, a importância dessa consciência e, no caso de
escritores, de se cercar de todas as formas para que a história seja fiel à
realidade daqueles personagens que são retratados, ou seja, para que consigamos
romper da bolha do lugar a partir de onde escrevemos.
IH. Quão importantes
são a tecnologia e a linguagem em seus romances, como os exemplos que mencionei
anteriormente? Isso me faz lembrar de uma espécie de poesia digital, quando
você incorpora conceitos ou palavras que de alguma forma fragmentam o
conteúdo/discurso.
AT. Tanto a
linguagem quanto a tecnologia, creio, são importantes enquanto mediadoras. Uma
e outra mediam nossas relações, ajudam a moldar nosso tempo, para o bem e para
o mal, nossos costumes, a forma como nos comportamos, estudamos, trabalhamos.
Ambas já fazem parte de nossa vida de uma maneira praticamente indissociável.
Daí a importância desse verniz tecnológico em meus romances e dos experimentos
com a linguagem, testando fronteiras linguísticas.
IH. Muito
obrigada por conceder esta entrevista. Na esperança de ter um próximo romance
como continuação de Morte Sul Peste Oeste
ou continuar tratando de temas tão relevantes e atuais.
Bibliografía
Timm,
A. (2020). Morte Sul Peste Oeste. Porto Alegre, Taverna.
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Recibido: 26/10/2022
Aceptado: 20/12/2022
Publicado: 17/01/2023